Ana Cristina Cesar, ou simplesmente Ana C., como passou a assinar ainda muito jovem, teve uma passagem breve e turbulenta no cenário literário brasileiro. Mesmo assim, conseguiu deixar sua marca, como demonstra a homenagem que a escritora recebe na Festa Literária Internacional de Paraty deste ano.
Nascida em 1952 e falecida em 1983, apesar da vida curta, foi uma autora ativa e intensa, não apenas na área da poesia – apesar desta ter sido sua produção mais extensa e memorável – principalmente porque ali estava a sua maneira de ver, sentir e descrever o mundo.
A autora também é reconhecida pela sua crítica literária e a tradução de outros grandes nomes, como Emily Dickinson, Katherine Mansfield e Sylvia Plath.
Ana C., infelizmente, ainda tem seu nome à sombra de escritoras e escritores que alcançaram força maior, como Clarice Lispector, a quem ela lia criticamente, e Paulo Leminski, um outro nome da Poesia Marginal, que acabou ganhando mais notoriedade.
A Poesia Marginal
Exemplo da contracultura, a Poesia Marginal, ou Geração Mimeógrafo, como também foi conhecida, é resultado de um período turbulento da História Brasileira, principalmente devido ao período de censura da Ditadura Militar.
Hélio Oiticica, importante artista plástico no plano da arte contemporânea, não apenas brasileira, mas mundial, definiu o período: “seja marginal, seja herói”.
Uma das marcas da produção da época era gerar uma reflexão sobre as formas da sociedade, levando para a Literatura os elementos mais representativos da violência nas grandes cidades. O efeito disso foi impossibilitar a publicação de muitos destes escritos, devido ao alto teor crítico e, portanto, “censurável”.
Com isto, os próprios artistas recorriam ao mimeógrafo para copiar seus livros de maneira artesanal e assim não ter qualquer vínculo com editoras.
Esse método era muito limitado, impedindo grandes tiragens e restringindo a obra para grupos seletos. Com o passar dos anos, muitas dessas obras foram perdidas e apenas recentemente editoras demonstraram real interesse na publicação desses artistas, buscando a obra fragmentada para edições completas e póstumas desses autores.
No caso de Ana C., cuja morte se deu muito jovem, foram poucos os livros publicados ainda em vida. Sua obra jamais publicada é mais extensa do que aquelas editadas pela própria escritora, deixando a cargo das casas de livros atuais uma nova leitura e edição de seus escritos.
A luz na escuridão
Depois de vários anos com suas obras no desconhecido, é de extrema importância que os Poetas Marginais estejam sendo relançados ou muitas vezes lançados pela primeira vez. No caso de Ana Cristina César, sua obra e a homenagem que ela vem recebendo, surge num momento chave, onde a discussão da participação feminina na construção do mundo está calorosa e cada vez mais ativa.
A Flip, inclusive, trouxe a bielorrussa ganhadora do Nobel de Literatura, Svetlana Alexievich, deixando a comunidade literária polvorosa.
Em conferência realizada no Rio de Janeiro pela professora Beatriz Resende, seis meses antes da morte da autora, para o curso “Literatura de mulheres no Brasil”, Ana C. defende a participação da mulher e uma estética própria, partindo do íntimo ao público.
Nesta conferência ela defende principalmente uma ideia que ficou marcada em sua trajetória: a de que os escritos íntimos são a forma mais pura e verdadeira da Literatura.
Entre os lançamentos relacionados à autora que permitem ao grande público um maior conhecimento de sua obra, não estão apenas escritos feitos por ela. Uma fotobiografia é um dos títulos mais aguardados por críticos e fãs de sua obra, cobrindo os seus 31 anos e incluindo alguns textos que ela escreveu datados desde a sua infância até os seus últimos anos de vida.
O livro, “Inconfissões – Fotobiografia de Ana Cristina Cesar”, foi organizado por Eucanaã Ferraz, consultor de literatura do IMS e poeta, sairá pelo selo do Instituto Moreira Salles, com lançamento na própria FLIP.
A biografia “Ana C – o sangue de uma poeta”, escrita por Italo Moriconi, também teve sua segunda edição lançada na Flip.
Como parceiros de sua obra, estão nomes como Armando Freitas Filho, que participou da mesa de abertura da Flip, e Heloisa Buarque de Hollanda, responsável por publicá-la em uma de suas coletâneas, “26 poetas hoje”, em 1975.
Obra reduzida
Apesar de ter publicado várias obras artesanais, o único livro verdadeiramente publicado em vida, “A teus pés”, recentemente relançado pela Companhia das Letras, antecedeu sua morte, causada pela depressão que a levou ao suicídio, atirando-se da janela de seu apartamento em Copacabana.
Com esse pretexto, algumas pessoas chegam até mesmo a desmerecer sua obra. O principal argumento contra ela é a falta de escolha da autora para decidir sobre seus escritos posteriores. No entanto, verdade seja dita, ainda há muito de Ana C. para ser descoberto pelo grande público.
Mesmo que essas seleções não sejam feitas pela autora, elas podem pintar cada vez mais claramente a imagem desta escritora que, a partir desta edição da Flip, deverá ter ainda mais notoriedade entre os leitores de todas as idades.
5 poemas para conhecer Ana Cristina Cesar
Para conhecer melhor a autora, nada melhor do que pegar as palavras da própria. Veja abaixo 5 poemas retirados da obra “poética”, de 2013, da editora Companhia das Letras.
quartetos
Desdenho os teus passos
Retórica triste:
Sorrio e na alma
De ti nada existe
Eu morro e remorro
Na vida que passa
Eu ouço teus passos
Compasso infernal
Nasci para a vida
De morte vivi
Mas tudo se acaba
Silêncio. Morri.
(1967)
poesia
jardins inabitados pensamentos
pretensas palavras em
pedaços
jardins ausenta-se
a lua figura de
uma falta contemplada
jardins extremos dessa ausência
de jardins anteriores que
recuam
ausência frequentada sem mistério
céu que recua
sem pergunta
ulysses
E ele e os outros me veem.
Quem escolheu este rosto para mim?
Empate outra vez. Ele teme o pontiagudo
estilete da minha arte tanto quanto
eu temo o dele.
Segredos cansados de sua tirania
tiranos que desejam ser destronados
Segredos, silenciosos, de pedra,
sentados nos palácios escuros
de nossos dois corações:
segredos cansados de sua tirania:
tiranos que desejam ser destronados.
o mesmo quarto e a mesma hora
toca um tango
uma formiga na pele
da barriga,
rápida e ruiva,
Uma sentinela: ilha de terrível sede.
Conchas humanas.
fama e fortuna
Assinei meu nome tantas vezes
e agora viro manchete de jornal.
Corpo dói – linha nevrálgica via
coração. Os vizinhos abaixo
imploram minha expulsão imediata.
Não ouviram o frenesi pianíssimo da chuva
nem a primeira história mesmo de terror:
no Madame Tussaud o assassino esculpia
as vítimas em cera. Virou manchete.
Eu guio um carro. Olho a baía ao longe,
na bruma de neon, e penso em Haia,
Hamburgo, Dover, âncoras levantadas
em Lisboa. Não cheguei ao mundo novo.
Nada é nacional. Desço no meu salto,
dói a culpa intrusa: ter roubado
teu direito de sofrer. Roubei tua
surdina, me joguei ao mar,
estou fazendo água. Dá o bote.
gramas
O coração tem pouca ironia de tardinha
Segredos carnais à flor da pele
poemas descarnados aguardando
A vida recusa transportar-se para outeiros
buracos cavados por doninhas
ervas que florescem
O coração tem pouquíssimo fôlego na piscina
Nos quintais dispara úmido
Nas salas fechadas cuida das buzinas
A vida se encarrega das janelas
mas acaba descendo em correria
Não cabe Não suporta Não tem peso