“Diabolus in musica” a inspiração fáustica na arte

Feiticeiros e bruxas confabulando com o Tinhoso - Compendium Maleficarum

Abertura

Era 1994. Copa do mundo acontecendo na Itália. Brasil versus Camarões. Taffarel, Jorginho, Aldair, Márcio Santos, Leonardo, Mauro Silva, Dunga, Raí (Muller), Zinho (Paulo Sérgio), Bebeto e Romário. 3×0. Não pude ver aquele jogo, estava em um micro-ônibus junto com um grupo de pré-adolescentes interioranos (Rodrigo, Dumbo, Corvo e quase toda Nova Araçá) em direção a Curitiba, ia ser seminarista por alguns dias. Apesar de possuir – se é que isso é algo que possuímos – uma terrível memória, três coisas me marcaram muito durante os poucos dias que dediquei minha vida ao Senhor: 1) um soco no estômago que levei de um padre mexicano renegado da lucha libre; 2) a performance de um “casal” de padres se fazendo passar por Elis Regina e Tom Jobim cantando “Águas de março”; e finalmente 3) a salutar brincadeira do “caça diabo”.

A primeira me fez compreender a lógica da fé de maneira visceral, literalmente. Por conta da segunda acabei desistindo de participar daquele reality show sacerdotal, salvando assim minha adolescência futura, garantindo um asco aparentemente inexplicável com relação aos clássicos da MPB e, consequentemente, uma vida sexual normal e regular. Mas a caça ao tinhoso que acabou por ter um efeito progressivo na minha mente e serviu de base para uma sequência de ideias que viriam. Deixe-me explicar, brincadeiras são coisa séria, e essa dizia muita coisa. Reuniam-se todos os seminaristas cedo pela manhã devidamente armados com sarrafos feitos de papelão muito bem enrolado, escolhia-se dentre eles um para ser o “diabo” (os critérios de escolha variavam entre o ânimo dos padres, a feiura de algum seminarista ou faltas nas atividades durante a semana) e lhe era dada uma dianteira de uma hora para se esconder no território gigantesco que era a sede dos “Legionários de Cristo”. As regras eram simples e consistiam em dizer ao “zé pelintra” da vez: Te esconde, se os outros te encontrarem antes do fim do dia o sarrafo vai comer.

Brasil 3 x 0 Camarões 1994
Brasil 3 x 0 Camarões 1994

Naquele final-de-semana sobrou para o Corvo, um guri de Nova Araçá que recebeu a alcunha pela ausência de queixo e presença demasiada de nariz. E essa era a única explicação para a escolha, afinal, o “tinhoso” tem que ser feito, certo? Pessoalmente desisti da brincadeira e fui jogar futebol, ou melhor, “pelada de Jesus” onde aprendíamos que passar a bola era uma virtude cristã. Ao final da tarde, porém, observava de longe o fim da caçada… uma dezena de seminaristas furiosos enchendo o pobre Corvo de porrada e, em seguida, carregando-o ainda esperneando para jogá-lo em um açude próximo do refeitório. Tudo bíblico, canônico, descente. Entre os sorrisos dos padres que observavam ao longe pensei “sovar o diabo de paulada e quase afogá-lo deve ser outra virtude cristã”. Em dois dias estava de volta em casa jogando video-game, escutando música, lendo gibis e vendo pornografia como qualquer adolescente, eu havia me identificado com o demônio.

Exposição

O mito, antes de se juntar ao “logos” e se tornar “mitologia”, era corpo. Corpo como símbolo, dança e ritmo. A palavra com sentido vem depois e não participa de sua infância. Tratava-se do rito, do movimento repetitivo e do transe do xamã. Já em sua fase descritiva, quando as primeiras histórias foram contadas, surge um padrão que se repete em diferentes pontos do tempo e do espaço. É aquilo que Joseph Champbell chama de “monomito” a jornada heroica e cíclica do herói. A paixão representa isso claramente, bem como incontáveis hagiografias pelo mundo também o fazem. O diabo era pois aquele que buscava quebrar o ciclo, o obstáculo que se devia superar mas, ainda assim, inevitável. Um bom exemplo desse tipo de personagem controverso na cultura antiga é Shiva, o destruidor. Parte da trindade hindu juntamente com Vishnu (preservador) e Brahma (criador), ele porta um tridente em uma das mãos e um tambor em outra. Conhecido como o senhor da dança cósmica, é ele quem dita o ritmo do cosmos em seu eterno retorno. Da mesma forma que o equilíbrio do Tao chinês, o culto à Pã na cultura greco-romana ou a eterna guerra entre Ahura Mazda e Arimã na Pérsia, tais ciclos não eram progressivos, ao contrário, toda a evolução previa também uma entropia.

Feiticeiros e bruxas confabulando com o Tinhoso - Compendium Maleficarum
Feiticeiros e bruxas confabulando com o Tinhoso – Compendium Maleficarum

No auge do medievo europeu, mais precisamente na época do Papa Gregório Magno (em torno do séc. VI) surge a semente de um fenômeno que mudaria nossa forma de pensar e agir no mundo. Poderíamos explicar o processo de várias maneiras, sejam elas econômicas, sociológicas ou filosóficas, porém o faremos através do já citado “sete peles” e de sua grande companheira, a música. Em sua ânsia por domar os resquícios pagãos na Europa, a igreja passa a condenar (a partir de Santo Agostinho e das doutrinas platônicas) as expressões naturais e corpóreas, colocando toda a ênfase da fé no “reino dos céus”, na razão, na contemplação. É importante notar aqui que as únicas figuras diabólicas presentes na Bíblia são, respectivamente, aquele que tece um longo diálogo desafiador com Jeová sobre o destino de seu querido servo Jó, e o tentador do deserto que ofereceu todos os reinos do mundo a Jesus. Em ambos os casos o diabo aparece em uma posição claramente inferior e de acordo com os padrões mitológicos da época, ou seja, tentador mas não a encarnação do mal ou reflexo invertido da divindade. A associação da figura do deus Pã com esse personagem fez parte de uma campanha ostensiva de dominação da igreja cristã. Foi a partir deste ponto que o mundo, a natureza, o corpo (em especial o feminino) passaram a ser relacionamos diretamente com o maligno. Nesta tentativa de arrebatamento aos céus da razão contemplativa surge a transição entre a música modal e tonal, entre o transe e o êxtase.

Aqui a música (e também a cultura) passa a se simplificar e formar padrões. Baseando-se na harmonia das esferas pitagórica, e na divisão tonal por ele proposta, usa-se o canto para aquietar o corpo, dominando assim os fatores diabólicos, e elevar o espírito até a verdade. Foi justamente a racionalização e a simplicidade (no sentido dos poucos elementos em jogo na linguagem) que foram responsáveis pelas incríveis modificações da cultura ocidental através dos séculos. O canto gregoriano exemplifica perfeitamente esse processo. A caça ao diabo havia sido bem sucedida, o corpo foi espancado, e escondido no lago.

http://youtu.be/GfbITZgBZzs

O fim do período feudal europeu, a ascensão da burguesia, a queda das monarquias hereditárias, a troca da religião pela ciência e o consequente culto ao capital consumam um novo mundo e um novo tempo. Um novo mundo por que toda a cosmologia estava em fase de reconstrução, as fronteiras se expandiam e/ou eram modificadas e os óculos dos dogmas religiosos foram substituídos pela lente de aumento da ciência. Um novo tempo pois a circularidade do sagrado acaba por ser rompida em função de uma crescente crença no futuro proveniente dos princípios racionais e capitalistas. Se antes o tempo era um círculo que emulava a própria criação, agora ele mais parece uma flecha em direção à uma utopia humana, sempre evoluindo. A música vai ser, ao mesmo tempo, causa e sintoma dessas mudanças. Se no canto gregoriano o trítono, esse famoso “diabolus in musica” (não se trata do álbum da banda estadunidense Slayer), era evitado, aqui ele serve de motor para a evolução. Note-se a diferença, na antiguidade o diabo promovia o reinício do ciclo através da destruição, a repetição era inevitável. Já no alto medievo ele era renegado em favor de uma certa “calma” musical e espiritual. Mas na modernidade ele passa a ser uma escada, o catalizador da evolução, já em uma oitava superior. Se aqui o tempo é uma flecha talvez ela não seja assim tão linear afinal, mas uma espiral logarítmica.

O Fausto de Murnau (1926) o "sete peles" contratualista.
O Fausto de Murnau (1926) o “sete peles” contratualista.

O “escamoso” também obtém aqui um novo significado. Longe de ser o mal encarnado ele passa a ter um papel, ao mesmo tempo, de inspirador intelectual, representante dos mistérios da natureza e daquele que confere dons extraordinários. Por um lado é o retorno da figura de Hades e sua imensa riqueza, por outro o trato com este é completamente inédito. Surgem as histórias fáusticas e seus pactos em troca de favores. O diabo, o corpo, a natureza agora não são mais indesejáveis mas domináveis por meio da razão, um pacto devidamente acordado entre as partes. A aceitação do trítono na música representa a vitória do antropocentrismo moderno e sua racionalidade contra as superstições e seres sobrenaturais. Isso acaba por afetar toda a cultura em especial a música onde podemos ver o ápice da transição tonal, aqui surge a sonata (em oposição à cantata) e sua progressão em torno de um tema com espaços bem definidos e acordos engenhosamente arranjados. A música é vista como a expressão mais pura da matemática e esta, por sua vez, da própria razão. Talvez o maior exemplo seja a obra de Beethoven, em especial na sua famosa 9ª sinfonia, que representam esse triunfo sobre o modo antigo. Agora toda a civilização ocidental havia se identificado de forma irreversível com o demônio, assim como eu havia feito enquanto os padres cantavam “águas de março”.

Recapitulação

Desde o mito primitivo e seus primeiros sons rítmicos que imitavam a pulsação do próprio universo, passando pela antiguidade e a primeira tentativa de racionalização e ordenação, pela idade média onde a “caça ao diabo” foi institucionalizada, até a visão moderna fruto do paradigma científico/capitalista voltada para o futuro, tudo se resume em uma alternância de som e ruído. Este ensaio falou um pouco sobre a importância do ruído, esse tinhoso, fugindo da dicotomia que acabou em maniqueísmo prático entre mundo e espírito, clamando por uma guerra em cada homem, buscando aquilo que se tornou na idade moderna o motor da inovação por meio de uma simples mudança de perspectiva. Essa forma de tratar o mundo permeou a literatura, pintura, escultura e principalmente a música até o princípio do século XX tornando-se sinônimo do caráter imperialista europeu. Por conta disso, uma herança positiva e negativa, somos hoje todos europeus na forma de pensar e viver. Porém após a massificação por meio das técnicas de reprodução midiáticas, especialmente nos últimos anos por meio da rede mundial, voltamos novamente a um ciclo de ruptura e abertura, e estamos ainda aguardando (ou criando) uma resolução apropriada para esse processo.

Coda

Como estava a procura do elemento perturbador acabei indo escrever no lugar mais óbvio, a igreja. Foi uma psicografia de uma tarde, acabou sendo uma confissão sem padre. A pergunta que fica é: Não seria, quem sabe, uma questão de dimensões? Se observamos a progressão cultural ocidental de longe, levando em conta que ela ocorre em espirais cada vez mais “elevadas” propiciadas por rupturas, não poderíamos observar um círculo formado por uma única espiral? Como uma resistência elétrica cósmica? Quando tudo foi rompido, não seria a hora de resignificar? E, por fim, “Coda” está entre os melhores álbuns da discografia do Led Zeppelin?

Nota: Este humilde ensaio foi feito durante as aulas de Filosofia Estética do Prof. Gerson Luis Trombetta e inspirado em seu artigo “O círculo e a flecha: Representações do tempo na música” uma leitura extremamente recomendada!