O jogo da vida
No extremo oriente o "jogo da vida" tinha sentido literal.

A cosmogonia, o nascimento do universo, foi imaginada de diversas maneiras durante a história. Para nós ocidentais, independente se acreditemos no big-bang e em todas as palavras do velho Darwin, o universo é a obra de um artífice ou no mínimo uma construção relativamente ordenada que apresenta certo sentido (inteligível). Por isso que o conceito de “ciência” objetiva surge no ocidente, se não pudéssemos dar sentido ao mundo não haveria motivo para perder tempo pesquisando. Já na Índia antiga o mundo é teatro e dança onde trocamos de papéis entre animais, homens e deuses até alcançar moksha. Mas tudo não passa de uma maya, uma ilusão embalada pela batida dançante de Nataraj. Por fim, para os chineses, o mundo não tem um sentido fora de si pois é um jogo. Essa dinâmica é a ordem celestial, o TAO. Não existe nada além do jogar, uma brincadeira que se dá entre nós e o mundo.

Algum tempo atrás assisti um documentário que explora esse aspecto lúdico da existência chamado “The Institute”. O ponto central da história é uma organização sediada na cidade estadunidense de São Francisco chamada “Jejune Institute”. Ninguém sabia se o tal instituto era real ou não, o fato é que muitas pessoas foram levadas a entrar em um jogo que explorava o espaço urbano de maneira criativa e mágica. Por meio de pequenos jogos e encontros que parodiavam os gurus dos 60’s, o fundador Octavio Coleman guiava seus “seguidores” por um mundo completamente novo através de um mote altamente sugestivo: nonchalance (despreocupação, indiferença). Ainda assim a tal ideia de que a cidade, a viagem e a própria vida é uma criação essencialmente lúdica da nossa mente não é nenhuma novidade. Essa ideia é muito presente, por exemplo, nas diversas escolas budistas, taoistas e até mesmo no misticismo islâmico, mas só acaba por ser popularizar no ocidente através do flanêur  de  Balzac, Baudelaire e Walter Benjamin. O flanêur é um andarilho, um vagabundo, um produto da sociedade industrial “preso” na cidade e que passa a experimentá-la andando a esmo.  Em síntese é aquele mendigo de sucesso que mencionei em outro texto. Esse personagem arquetípico busca associações arbitrárias entre o seu estado interno e a paisagem urbana, entre personalidade e história  guiando-se por um sentimento essencialmente erótico com o meio cria.

Nos anos 1960 surge, também na França, a Internacional Situacionista. O nome indica não uma passividade (de apoiar a “situação” no sentido político) mas, ao contrário, criar situações por meio de um jogo superior. O situacionista é aquele que usa a vontade na criação de situações não ordinárias. A situação aqui referida é construída dentro do espaço e do tempo com uma duração determinada (alguns budistas diram “um bard0“). A I. S. se dirigia à todos os “jogadores revolucionários” e os chamava para fora da pré-história da vida cotidiana. Foram eles que cunharam o conceito de “urbanismo unitário” que buscava o uso do projeto, da técnica e dos materiais numa construção integral não apenas do ambiente mas de sua relação intrínseca com a experiência humana. Enquanto o urbanismo comum buscava a conformação e a padronização, o Urbanismo Unitário situacionista tinha como norte a apropriação territorial inconformada do jogador revolucionário, o mesmo flanêur, aquele sabia se apropriar da cidade de maneira lúdica. A cidade se transforma em algo orgânico, como a linguagem, e pode ser lida.

http://youtu.be/A4FAJsFqHe0

O grande pensador da I. S. foi sem dúvida Guy Debord autor da Sociedade do Espetáculo e principal criador da ideia de uma “psicogeografia” urbana. Se a geografia explica a ação das forças naturais, composição de solos, clima e outros fatores sobre as formações sócio-econômicas humanas, a psicogeografia seria o estudo das leis exatas e dos efeitos precisos do meio geográfico, planejado conscientemente ou não, que agem diretamente sobre o comportamento dos indivíduos. A teoria da deriva proposta por Debord é a principal ferramenta para exploração psicogeográfica. A deriva é a sistematização do flanêur. Andar sem rumo pela cidade apenas sujeito às diversas correntes formais, turbilhões psicológicos, cores, histórias e cheiros são guias mais apropriados do que agências de turismo. O conceito de deriva busca reconhecer os efeitos da psicogeografia e criar um comportamento criativo que se opõe as ideias tradicionais de viagem e passeio. Os limites de tempo e espaço da deriva estão relacionados aos seus objetivos, pode-se derivar dentro de um quarto ou por todo o mundo, durante alguns minutos ou por um dia todo.

Os resultados da deriva voluntária e sua exploração da psicogeografia podem ser materializados de várias maneiras. Desenhos, poemas, histórias, músicas e assim por diante, tudo faz parte da absorção da meio. Uma das formas mais interessantes e completas de registro exploratório é o mapa psicogeográfico, uma experiência cartográfica que relaciona elementos subjetivos como sentimentos, impressões e memórias, com observação objetiva do meio. Existem inúmeros exemplos desse tipo de registro. Você pode criar mapas que expressem sua relação sentimental com determinado bairro ou cidade, pode também registrar as variações de cores e materiais em uma rua qualquer ou mesmo como a cidade é dividida por música! Depende única e exclusivamente da sua vontade e criatividade em moldar suas próprias experiências, afinal, mais da metade daquilo que chamamos de memória é invenção, uma interpolação entre vagas lembranças de fatos que mais parecem um sonho.

psicogeografia
A mente e a linguagem delimitam a experiência.

Agora, Alice/Neo, se você quer realmente escolher a pílula vermelha, entrar no país da maravilhas e ver how deep the rabbit-hole goes o interessante é criar alguns hábitos:

  • Como um filósofo, seja curioso com as coisas aparentemente insignificantes do cotidiano, elas são o material da exploração psicogeográfica;
  • Mantenha um diário e reúna nele as impressões de suas derivas da forma que achar mais conveniente. Estudamos a cidade para transformar a forma com que a vemos;
  • A noite também pode ser explorada, como falei em outro texto sobre sonhos lúcidos, é interessante criar um caderno de sonhos e insights para associá-lo as experiências diárias. Poucas práticas proporcionam material criativo mais rico que essa;
  • Não seja passivo, interfira no meio! Faça desenhos, grafitagens, performances, torne tudo público (anonimamente ou não). A cidade não é só para estudar, mas sim para modificar. Isso é um diário também, são pistas para outros jogadores urbanos, uma reação em cadeia da consciência coletiva com desdobramentos imprevisíveis;
  • Meditar, ou seja, sentar e não fazer nada, também é uma forma de deriva (talvez a mais interessante delas). Se conhecemos a cidade andando livremente, conhecemos a mente descansando em seu estado natural, observando sem maiores expectativas.

Se voltamos a questão inicial da forma como encaramos a mecânica do mundo (afinal, é pura questão de probabilidades, escolhas e intuição) ao observarmos os elementos do nosso dia como peças de um jogo regulado pela mente podemos usar esses mesmos elementos de maneira criativa, agindo como um artífice idêntico ao encontrado no modelo cosmogônico ocidental. Jogando dessa maneira criamos nosso mundo diário de uma forma completamente diferente, pleno de significado para nós e para os outros. Em um contexto social dançamos, como acreditam os hindus, em uma peça composta por outros jogadores com os quais trocamos constantemente de papel. Empenhar-se em ter essa visão mágica do mundo (no sentido que dá Alan Moore: “efetuar transformações na consciência através da linguagem”) não é privilégio de artistas e poetas, é sim um dever humano. Reconhecer suas atividades físicas e mentais como um fluxo contínuo, compreendê-las e compartilhar essa compreensão é o resumo do jogo humano. Que no final, lá pronto pra ser queimado ou servir de comida aos vermes, não digam de ti, como as crianças que excluem um colega na hora do recreio, “esse chato não soube brincar“.

NOTAS:

  1. A coleção Baderna da Conrad é sempre uma referência nesses assuntos aqui na terrinha, além disso a editora portoalegrense Deriva tem publicado alguns títulos bem interessantes sobre o assunto. Pesquisa, maldito! Existe informação sem fim sobre o tema nesse mar caótico da internet.
  2. Este texto fala somente de maneira superficial sobre a I.S. então vale a pena ler o texto da Paola Berenstein Jacques sobre o assunto.
  3. Vou abordar o tema “turismo” em outros textos mas, se quiser se adiantar, aconselho ler “Superando o turismo” do Hakim Bay, “Teoria da Viagem” do Michel Onfray e “A arte de viajar” do Alain de Bottom.

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