Reflexão sobre o filme ‘Trainspotting’ e a patologização da angústia no mundo contemporâneo

“Trainspotting – Sem Limites” é um filme britânico de 1996, do gênero drama, dirigido por Danny Boyle e com roteiro baseado em livro homônimo do escritor Irvine Welsh. O filme conta a vida de um grupo de jovens viciados em heroína em Edimburgo, na Escócia. Num subúrbio de Edimburgo, quatro jovens sem perspectivas mergulham no submundo para manter seu vício pela heroína. “Amigos”, que são ladrões e viciados, caminham inexoravelmente para o fim desta amizade e, simultaneamente (com exceção de um do bando), marcham para a auto-destruição.

capa trainspotting

Logo no início do filme “Trainspotting”, apresenta-se a fala de um personagem que diz:

“Escolha viver. Escolha um emprego. Escolha uma carreira, uma família. Escolha uma televisão enorme. Escolha lavadora, carro, CD Player e abridor de latas elétrico. Escolha saúde, colesterol baixo e plano dentário. Escolha viver. Mas por que eu iria querer isso? Escolhi não viver. Escolhi outra coisa. Os motivos? Não há motivos. Quem precisa de motivos quando tem heroína?”.

É com esse discurso inicial no filme que podemos perceber, também, a ideia da procura de controle e de algo padronizado sobre a vida. O costume de escolher carreira, família, carro etc., no discurso desse personagem, nos remete ao conceito de uma vida segura, estabilizada e previsível, onde tudo está no seu lugar. Fugir deste controle é entrar na angústia. Então, se faz necessário criar um sentido para a nossa existência para se combater o sem-sentido que gera a angústia. Nem que este sentido seja escolher um carro ou se tornar um consumidor alienado (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009).

Através da ciência, no mundo contemporâneo, o homem procura dominar as circunstâncias da vida. Mas há um preço a se pagar por essas ilusões de controle e previsão, que é administrar a angústia no seu modo patológico de expressão, como as fobias, compulsões, estados de pânico e depressão. Então, o ser humano, na sua ilusão de controle sobre o devir, não aceita a angústia como sinalizadora da limitação da ciência e dos padrões sociais de uma vida, que tenta explicar os fenômenos da vida perdendo a angústia como espaço de reflexão privilegiado sobre a existência (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009).

trainspotting-5

Assim, “em nosso contexto histórico, a angústia é, em geral, considerada uma condição patológica que deve ser ‘aliviada’ por terapias ou medicamentos. O bem-estar humano encontra-se, cada vez mais, dependente de saberes técnicos especializados” (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, pag. 7, 2009).

Mas o personagem do filme evidencia, desde o início, essa não-necessidade de viver uma vida padrão que tenta ter o controle sobre o devir, no entanto, para compensar a sua angústia de um mundo fora do modelo padrão, ele se envolve com as drogas, quando o mesmo diz: “[…] não há motivos. Quem precisa de motivos quando tem heroína?”. A heroína se torna em uma fuga. O que reafirma também a angústia como algo patológico. Assim, se a vida do ser humano perde o sentido, e a segurança sobre o devir se desfaz, ou seja, não há ninguém que lhe diga sobre o que seria a referência para viver, se tem então a necessidade de curar a angústia através de especialistas, combatê-la pelo envolvimento com as ocupações úteis ou se entregar as drogas. A angústia aponta para a dimensão trágica da existência, a fragilidade, vulnerabilidade e a finitude perante a vida, e isso as pessoas tendem em não reconhecer (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009).

O sujeito que rompe com as familiaridades cotidianas, com os padrões, com as respostas científicas que passam segurança sobre o devir, mostra que o território da angústia é exatamente esta insuficiência de qualquer território antecipadamente formado ou explicado (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009).

Se a proliferação de respostas científicas, religiosas, moralizantes e a padronização de uma vida segura não podem deter a devastação do mundo enquanto habitação existencial; se em algum momento o sujeito pode fugir destas respostas, dando a entender que elas não são o suficiente para suprir a falta que ele tem, é perceptível que a angústia é algo que nos é essencial e, sendo assim, assumirmos nossa singularidade é fundamental para que existam outros modos de experiência da angústia, outras formas de desvelamento do real (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009).

trainspotting2

Desse modo, o personagem do filme tenta sair dessa patologização da angústia como marcas recorrentes dos modos de produção de subjetividade na época contemporânea, mas, ao invés de saber lidar com a nova demanda, que é conseqüência de uma vida sem sentido por não ter mais aquela sociedade atual que lhe fornecia este sentido, o personagem se envolve com as drogas para suprir o seu sem-sentido da vida. Isso mostra o quanto a sociedade do consumo, da ciência e da moral, padronizou a subjetividade humana, lhe ensinando como ser feliz, ao invés do próprio sujeito aprender a lidar com a sua singularidade e ser feliz ao seu modo (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009).

Assim, percebe-se o papel essencial da angústia na dinâmica da singularização da existência humana e a importância da ciência apropria-se desta questão não como uma reforçadora de patologias, mas abrir espaço para os processos de singularização que a angústia pode propiciar, pois é preciso que se aproprie de outras possibilidades, para além das dadas pela ideia de patologizar a angústia. (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009).

A angústia não pode ser vista como mero transtorno neuroquímico ou subjetivo a ser sanado por algum tratamento farmacológico ou psicoterápico adequado, mas como um espaço para uma nova formação do ser, já que a angústia pode ser uma possibilidade de uma experiência mais própria do existir enquanto ser-no-mundo. Aprender a lidar com ela é aprender a lidar com nosso existir e com tudo o que, a partir dele, nos vem ao encontro (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009).

O que pode ser compreendido nesse contexto é que a vida é insegurança. A cada momento nos dirigimos para uma insegurança maior. É um apostar. Nunca se sabe o que vai acontecer. E é belo que nunca se saiba. Se fosse previsível, não valeria a pena viver a vida. Se tudo fosse como se gostaria que fosse e se tudo fosse uma certeza, não seriamos ser humano, seriamos uma máquina. Só existem certezas e seguranças para as máquinas.

REFERÊNCIA:

DANTAS, B. J; SÁ, N. R; CARRETEIRO, C. O. C. T. A patologização da angústia no mundo contemporâneo. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 61, n. 2, 2009.

Erro › WordPress