Does it take much of a man to see his whole life go down,
To look up on the world from a hole in the ground,
To wait for your future like a horse that’s gone lame,
To lie in the gutter and die with no name?
(Only a Hobo – Bob Dylan)
Um amigo meu costumava a piscar o olho e dizer “sucesso!” sempre que se despedia. Pra mim ele tava era tirando com a minha cara! Afinal, como diabos definir uma vida bem vivida? No senso comum ela se relaciona sempre ao modelo de propriedade, família e função social mesmo em suas variantes contemporâneas. Mas e os invisíveis? Será que personagens ocultos da história, os mendigos, loucos e renunciantes de todos os tempos não teriam um papel importante na nossa construção enquanto pessoas e sociedade? Sem dúvida uma das coisas que mais me “atormenta” é aquele momento decisivo que determina essa ruptura com a vida coletiva, como quando Gandalf bate na porta do pacato Bilbo Bolseiro e o convida para uma aventura que o transformaria para sempre… bem, calma lá, deixe-me levantar mais alguns pensamentos e vamos ver até onde o coelho branco nos leva.
O louco andarilho é um dos arquétipos mais fortes da humanidade. Vive lá naquele oceano negro e insondável, depósito do imaginário de eras anteriores à história, que Jung batizou de inconsciente coletivo. Nos tempos antigos, assim como hoje, em algumas regiões a chegada de um maltrapilho misterioso e imprevisível sempre causa alvoroço. Cada qual desses caminhantes é um circo solitário que serve como contrapeso da nossa hipertrofiada razão instrumental. Eles são perigosos para os governos por serem móveis e difíceis de rastrear, deixam pegadas quase imperceptíveis e seguem, ser nômade é uma ameaça a ordem. Quem sabe por isso que o empresário grite “fracassados!”, “miserável” seja o conceito que o senso comum ou “louco” como diria o psicólogo… de qualquer forma são apenas tolerados (nunca aceitos) dentro da maioria das sociedades.
Percebe que tratar desse tema, debruçar-se sobre ele e imaginar um mundo tão diferente do nosso é examinar o sentido da própria vida? E quer algo que cause mais pânico? Talvez por isso a maioria de nós evite até de olhar (quem dirá falar) com esses sujos. Ainda assim Paulo Freire dizia algo que costumo repetir feito um mantra “a cabeça pensa onde os pés pisam” e isso sabem muito bem aqueles que escolheram caminhar. As pernas e os pés são os principais aparatos do pensamento, ficar parado é uma receita infalível para pensamentos monótonos. Mantendo isso em mente quem sabe, em um ponto de vista filosófico, mendigos e andarilhos em geral sejam muito mais bem-sucedidos do que a grande maioria dos empreendedores e sacerdotes do capital.
Pois então, coisas insignificantes muitas vezes servem de catalizadores para grandes mudanças. Sim, é verdade, só nos damos conta muito tempo depois quando vamos editar o filme velho e falho da memória. Aqui na minha ilha de edição aparece agora, por exemplo, o dia que encontrei a revista Hobo (um dos nomes populares para andarilhos que surgiu durante a grande depressão americana) nas prateleiras mágicas dos 90’s assim quase que por acaso. Lá dei de cara com o endiabrado Robert Jhonson e o outro “Robert”, o Crumb, além de muito blues das antigas e vários andarilhos peidando feijão com suas trouxinhas de roupa nas costas. O blues e os hobos estadunidenses trouxeram de volta o trovador louco e trágico da idade média, cantando suas verdades nas ruas ou nas rotações de uma vitrola, mas ainda de maneira completamente marginal.
Foi exatamente durante a primeira metade do século passado que os loucos da estrada voltaram a ser vistos com outros olhos. Os poetas da geração beat juntamente com o rock, ambos influenciados pelo pensamento oriental e por todo um ambiente onde a contracultura se espalhava um vírus através do vitorioso mundo ocidental, tomaram o arquétipo do louco como seu modelo de conduta. No tarô existe uma carta sem número onde se pode ver um homem que caminha olhando para o alto, com sua trouxa pendurada e um cachorro logo atrás, indo em direção a um precipício. É o símbolo das possibilidades infinitas, do começo do caminho e dos primeiros passos do “infante espiritual” mas, acima de tudo, é o arcano da coragem. Daquele que decide deixar seu mundo e caminhar ou, como diria Hesse, desses que quebram o ovo da vida e rumam em direção de Abraxas.
É essa imagem que evoca Kerouac em On the road e, principalmente, no Dharma Bums. A palavra sânscrita “dharma” tem muitas traduções possíveis dependendo do contexto mas, na maioria das vezes, está relacionado com um caminho, conduta ou uma forma determinada de agir. Influenciado pelo agitador cultural Alan Watts, um dos grandes responsáveis pela divulgação do pensamento oriental aqui nesse lado do planeta, Kerouac revive o ideal do renunciante e revaloriza seu papel social.
Nas duas grandes matrizes culturais do extremo oriente o renunciante é tido como um personagem indispensável para a sociedade a qual renunciou. O herói introspectivo do monomito de Campbell, o conquistador do mundo interno, a contrapartida necessária ao campeão construtivo exterior. Buda é o modelo perfeito desse tipo de herói, viveu entre as paredes de um palácio por 29 anos e então, após entrar em contato com a doença, a velhice e a morte, decide abdicar daquela vida luxuriante para seguir o caminho em busca de um fim para o sofrimento humano.
Com relação a isso, vale a pena estudar o caso da Índia, esse laboratório humano incomparável! Dentro do sistema de vida que conhecemos como hinduísmo a atitude frente ao andarilho e ao mendigo toma diversas formas. Se por um lado temos a extrema pobreza de parte da população e a apatia constrangedora das classes dominantes, por outro vemos a adoração daqueles que voluntariamente escolheram a renúncia de qualquer interesse no Samsara, o ciclo infindável de existências. Porém de uma forma ou de outra a maneira de vida de mendigos e sadhus não é apenas tolerada (como ocorre no ocidente) mas também incorporada como uma parte essencial do tecido social. A própria palavra “sadhu” quer dizer “bem-sucedido”! Um ótimo exemplo disso é o Kumbh Mela, a maior reunião religiosa do mundo, mostrado no documentário “Shortcut to Nirvana”.
Como nos fala Devdutt Pattanaik em seu livro Myth = Mithya: A Handbook of Hindu Mythology o objetivo da vida no hinduísmo e buscar moksha, a libertação do ciclo de renascimentos, para isso preconizam-se dois caminhos, um relacionado ao deus Vishnu e outro à Shiva. O primeiro enfatiza a vida no lar, construção familiar e a preservação da ordem social. Já o segundo é o caminho do renunciante, do eremita, do yogui andarilho, aquele que se afasta do tecido frágil da civilização para buscar em si a realização de moksha. Sendo assim o mendigo e o andarilho tem aqui o papel fundamental, ele nos lembra que a existência não passa de um sonho, um teatro onde desempenhamos determinados papéis transitórios e que não devemos nos identificar com o personagem.
Já o egípicio Albert Cossery em seu “Mendigos e Altivos” prefere olhar por um outro ângulo, mostrando o papel filosófico e o estilo de vida por trás de um grupo de mendigos do Cairo. Detalhe, o próprio Cossery praticou durante muito tempo a “arte da preguiça e da falta de ambição” ainda costuma afirmar: “Se um determinado livro não tiver sobre o leitor um tal impacto que no dia seguinte ele deixe de ir ao emprego, esse livro nada vale”, apesar de já estar desempregado quando li o livro ele surtiu um efeito bem parecido na minha vida. Usando essa mesma abordagem do egípcio, surge no Brasil um dos filmes mais geniais sobre o tema, Andarilhos (2006), do diretor Cao Guimarães. O filme possui apenas quatro personagens, os mendigos Gaúcho, Nercino e Paulão, além do astro principal, a BR 251. A genialidade fica por conta de uma edição impecável, sua abordagem inédita e a escolha inteligente dos tipos humanos. Vejam no link logo abaixo o documentário completo, prestem atenção nas primeiras falas do Gaúcho:
As narrativas marginais esquecidas, a existência de todos aqueles sob o manto da invisibilidade, são tão ou mais importantes que os protagonistas históricos. Um trabalho que aborda essa visão de maneira fantástica é Vidas Imaginárias do Marcel Schwob. A obra, idolatrada por Borges como uma das grandes livros da cultura ocidental, mostra a importância das biografias esquecidas da história e como ações aparentemente insignificantes desencadeiam eventos extraordinários. É triste pensar que, em uma sociedade produtiva foucaultiana como a nossa, assolada pela normose o lugar do diferente ainda é no manicômio (ou em liberdade, a base de remédios). Foi essa mentalidade que enterrou por muitos anos o artista Arthur Bispo do Rosário em uma clínica psiquiátrica a base de medicamentos idiotizantes, até que Nise da Silveira fosse resgatá-lo das garras do obtuso sistema de “saúde”. Na verdade alguns poucos mitos urbanos conseguem se criar no Brasil e nos acordar para uma realidade diferente, como o grande profeta Gentileza que somente depois da morte ganhou o reconhecimento merecido por sua coragem, o mais bem-sucedido louco brasileiro.
Escrevo isso tudo pois acredito que uma das questões mais importantes a serem levantadas hoje é o nosso conceito de sucesso. É o que faz Luc Ferry em seu ensaio sobre o tema no pensamento de Nietzsche que acabou se tornando o livro O que é uma vida bem sucedida?. Nele o francês apresenta quatro possibilidades para a vida após a “morte de Deus”: a vida quotidiana dos pais de família, a vida boêmia e edonista, a do empresário de sucesso e o caminho desalienado daquele que busca se conhecer. Além disso questiona o significado da palavra “êxito” indicando como dela surgem o “tédio” e também a “inveja”, fatores que tornaram a vida no século XX um pouco mais miserável.
A sabedoria de quem perdeu (ou deixou) tudo, aqueles que passam desapercebidos nas cidades e tornam menos monótonas as estradas, a vida sofrida e sem destino seguro, tudo isso deve ser valorizado e refletido no momento que queremos repensar o sentido da nossa própria vida. Como vemos em Asterios Polyp, a obra prima de David Mazzucchelli, que só entendeu a piada de existir quando seu apartamento pegou fogo, ou quando acompanhamos Tyler Durden no encontro consigo mesmo vendo-se livre ao deixar para trás sua vida antiga. O caminho do andarilho não parece ter muito sentido visto de fora, mas isso ocorre por que o destino final é o Ser (voluntária ou involuntariamente). E é por que muitos se perdem no caminho que essa mesma coragem deve ser tão admirada quanto a do membro ideal da sociedade. Enfim, todo o louco, andarilho e artista verdadeiro deve servir como um despertador para nos acordar do sonho da rotina e também como um modelo possível de vida, muito além da segurança do contrato social, porém válida. É como a figura atemporal de Sócrates, gordo e feio, que saía caminhando maltrapilho por Atenas lembrando aos gregos que “uma vida não examinada sequer merece ser vivida” e só entra para o clube dos mendigos de sucesso aquele que é louco o suficiente para encarar essa questão. Essa sim deveria ser nossa medida, como diria Milarepa (grande membro desse clube) “minha religião é viver e morrer sem arrependimentos”.
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