Quando Milton Nascimento entoou que os tambores de Minas soariam, eu não fazia a menor ideia do que isso queria dizer. Talvez isso tenha um sentido ainda mais amplo do que pude compreender até aqui, mas o fato é que os tambores – de Minas, de outro canto brasileiro, da Argentina ou do Uruguai – soam alto e forte pelo Candombe. Ngolas, Benguelas, Congos e Nganguelas ainda pulsam pelas ruas da capital uruguaia porque centenas de cativos passaram por elas.
A língua falada no noroeste africano, o kimbundo, foi a escolhida para batizar o som criado pelos escravos que chegavam naquele continente por volta do século XVII. O candombe, você verá, é mais do que um ritmo extraído pelos tamborileiros, foi uma das formas de expressão que os escravos encontraram.
Segundo Keila Grinberg, professora do Departamento de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e pesquisadora sobre “Dimensões da Cidadania no Século XIX”, o início do século 19 foi marcado pela escravidão, que “estava profundamente estabelecida no Brasil e na América Hispânica, e mais africanos chegavam nestes lugares do que nunca” e, com isso, os costumes migraram junto deles em navios.
Assim começou uma história de abusos, sangue e suor, mas também a história do Candombe, essa dança de atabaques que é típica da América do Sul e foi reconhecida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura como Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade.
O Barrio Sur é considerado como uma das primeiras moradas dos escravos africanos no Uruguai e ainda hoje vibra. O “tá tá tatá” de um bairro não ecoa em outro canto da cidade: é mais um grupo de Candombe, ou, como chamam, são as comparsas.
O som é extraído de três tipos diferentes de tambor: tambor piano, tambor chico e tambor repique. Essa santíssima trindade do batuque é chamada de La cuerda.
Você já deve ter reparado, o Candombe é cercado por personagens que desfilam a céu aberto com direito a um cortejo. A condução é a responsabilidade escobero, que tem a missão de ser o mensageiro, é seguido pelo gramillero, que é o mestre dos tambores e segue pelas ruas acompanhado por Mama Vieja, personagem feminina caracterizada como uma mulher trajada de cores fortes com um leque nas mãos.
No livro El Carnaval de Montevideo en el Siglo XIX, Jáureguy explica ainda que a data para o ápice da festividade não foi escolhida ao acaso pelos primeiros grupos: “Os candombes começaram no Natal; Seu apogeu foi alcançado no dia dos reis e durou os três domingos seguintes. A grande festa foi em 6 de janeiro, o dia de São Baltasar, o Rei Negro da lenda bíblica. As festividades duraram três dias seguidos e a consagração do rei aconteceu.
Antes das festividades começarem, eles passavam pela cidade pedindo dinheiro, casacos, galeras, cintos, colares, fitas e tudo que pudesse ser usado para vestir o rei com luxo, bem como a sala apropriada para celebrar o evento.” É por isso que podemos observar que as vinte figuras retratadas no quadro de Pedro Figari vestem-se com luxo.
Forte no Uruguai, o ritmo é difícil de definir pelas mãos insensíveis dos leigos mas o vídeo abaixo, produzido em 2015 pelo Mundo a Volta, ajuda a explicar. Apenas encaixar o Candombe em uma definição não basta, é preciso sentir o pulsar dos desfiles que são organizados pelas ruas uruguaias para captar a importância dos tambores para compreender a função da arte enquanto agente catalisador da representatividade e da formação da identidade coletiva e individual.
https://www.youtube.com/watch?v=qLPYDyPb9j8
Muito além da sonoridade, os grupos resgatam aspectos subjetivos da sociedade como a necessidade de que cada indivíduo deve pulsar junto dos demais através do som, o que faz com que todos precisem se escutar para alcançar a harmonizados.
A tentativa de explicar esse ritmo atravessou a fronteira da música e invadiu as telas do pintor montevideano Pedro Figari, que ficou conhecido por retratar a música e a dança festiva que se mesclava a ritos sagrados e a ancestralidade dos negros escravizados que sonhavam com a liberdade.
Se o repique dos tambores tem vibração, o uruguaio encontrou nas cores uma forma de retratar esse elemento central do Candombe no quadro “Candombe”, que remonta aos anos 30. Não só as cores, mas o movimento e a cadência foram transpostas para a imagem que retrato o rito começava no Natal e alcançava seu auge no dia reis, segundo o pesquisador Miguel Angel Jáureguy.
O som que era dos cativos, hoje liberta memórias e arte pelas ruas. Se, lá no começo do texto você ficou imaginando o que os tambores de nossa música tinham em comum, a essa altura, já deve ter compreendido: a herança dos negros escravizados é a nossa linha comum com os hermanos e se manifesta em toda força criativa de nossa cultura. A musicalidade negra foi uma forma de resistência e hoje é impossível resistir a ela, presente em tantos ritmos.