O grupo musical All You Need is Love, o maior cover tupiniquim dos Beatles (único musical licenciado dos Beatles no Brasil) se uniu com o coletivo Afroreggae num projeto que reúne música, dança, circo e um belíssimo projeto social.
O projeto Beatles na Favela, em parceria com o grupo Tom Brasil, começou sua tour nacional nesse último sábado, 30/04/2016, em São Paulo, no Teatro Bradesco. O grupo cultural Afroreggae e o All You Need is Love, farão juntos 30 concertos ao longo do ano, incluindo a gravação de um DVD e um especial de TV. Além da turnê, o projeto Beatles na Favela realizará oficinas de música clássica e palestras em diversas comunidades por todo o país, contando a história dos Beatles e explicando sobre os 21 anos de trabalho do Afroreggae.
Com o objetivo de levar e expandir a cultura a todas as pessoas, o projeto levará workshops de música às comunidades carentes por onde passarem. A proposta leva também cerca de 30 jovens moradores das comunidades do Rio de Janeiro que são acolhidas pelo Afroreggae, aos palcos dos shows em uma incrível apresentação circense, presente em grande parte do espetáculo e uma orquestra de metais e violinos. O espetáculo é dotado de vida e emoções. A música, a dança, a cultura e o espírito coletivo são transmitidos em toda a apresentação com muito êxito.
Era um sábado muito frio na cidade de São Paulo; os indícios do inverno haviam acabado de chegar naquela semana. Havia muitos meses que não se fazia frio de verdade na metrópole paulistana, mas ao chegar ao estacionamento do Shopping em que se localizava o Teatro Bradesco, percebi que o tempo não foi motivo para deixar as pessoas em casa, e a informação que chegou até mim, foi a de que a causa pela superlotação no estacionamento era justamente a apresentação no teatro.
A fila estava grande e, ao entrar no local da apresentação, já era notável que o lugar parecia já estar quase cheio cerca de 40 minutos antes do show. Nos camarins, o clima era de correria, como toda véspera de um grande show deve de ser, mas os garotos da banda principal, All You Need is Love, estavam bastante confiantes e passavam um curioso ar de tranquilidade naquele momento. Após apertamos as mãos, os desejei boa sorte e me direcionei ao meu lugar.
O último aviso foi dado e cada qual já estava a postos no palco. Ouviu-se o som estalado de latas com madeira; eram integrantes do Afroreggae entrando em cena e batucando em tambores coloridos feitos de algo parecido com latas de tinta. Mas as cortinas ainda não estavam abertas. Para surpresa de todos, estes entraram em cena pelos corredores, desfilando entre as fileiras de cadeiras da plateia numa batucada metálica e oca, que foi rapidamente cessada por um grito alto de um homem todo vestido de azul que empunhava uma grande luneta nas mãos que, se colocada de pé em paralelo ao seu corpo, quase ultrapassava sua baixa estatura. Este último, que comandava os demais, anunciou em alto e bom som o início do espetáculo, desejando uma boa noite ao público inquieto e curioso com a encenação.
Após o caloroso “boa noite”, emitido como resposta pela plateia, as cortinas vermelhas do palco se abriram e pode se ouvir as primeiras notas da inconfundível “All You Need is Love”. Saldados por muitas palmas, a banda começou o show a cem por hora. Entre as notas secas das guitarras e a cadência do baixo acompanhando a bateria metódica, era nítido a presença encorpada dos vários metais da Orquestra do Afroreggae preenchendo as músicas de cabo a rabo, sem deixar morrer o espírito alegre das canções mais agitadas da lendária banda londrina. Foi dessa forma, explosiva e muito bem temperada, que seguiu a apresentação. Na sequência, “Live and Let Die” e “Help” agitaram ainda mais o local e, a partir de então já não era mais possível ouvir as letras das músicas sendo cantadas apenas pelos integrantes da banda, mas por todo o teatro num uníssono encantador.
“A Hard Day’s Night” e “While my Guitar Gently Weeps”, fizeram ponte para uma sequência quádrupla que esquentaram as palmas das mãos. Primeiro, “Yesterday”, dando um novo clima intimista ao espetáculo e fazendo até escorrerem algumas lágrimas em rostos mais enrugados, como naqueles momentos em que uma canção parece ter o peso da lembrança de uma vida inteira. Depois, “In My Life”, fazendo conexão direta com a tão querida “Michele”, deram ao teatro um tom vivo, cheio de cores, explodindo em “Norwegian Wood”.
Até aí o espetáculo era como um dueto entre duas entidades no palco. O grupo musical All You Need is Love e o grupo teatral Afroreggae trabalhavam muito bem juntos. Além da orquestra de metais e violinos atrás da banda, os integrantes circenses entravam e saiam do palco entre maravilhosas encenações, danças e corridas de bicicletas de uma roda só, tudo isso numa sincronização perfeita com as músicas. Porém, nesse momento, as performances circenses deram espaço à banda. O nosso querido John Lennon está agora nos teclados. Um silêncio sufocante pairava no ar à espera das primeiras notas. Minha prece foi ouvida e um sorriso largo se esticou no meu rosto quando ouvi o início de “Imagine”. Aquela música é como uma oração, não só pra mim, mas, ao que me parecia, à quase todos os presentes. É como uma súplica aos céus em nome de toda a humanidade, numa fé que não nos foi ensinada em nenhuma religião conhecida. Na sequência, ainda mantendo o clima intimista, nosso George canta “Something” acompanhado por um surpreendente solo de Saxofone que arrepiou todos os pelos do corpo, e levantou alguns de seus assentos num aplauso infindo.
Estamos exatamente na metade do espetáculo, e é nesse momento que recebemos uma sequência de músicas que dispara qualquer coração pelos garotos britânicos. “Here Comes the Sun” foi a primeira a levantar novamente o volume da voz da plateia. Em seguida, Paul vai para o piano e toca um dos maiores hinos da história dos Beatles. “Let It Be” me deixou de cabelo em pé. Cheia de esperança, a letra dessa música revive sentimentos esquecidos há anos, enche corações de vida e quase nos faz chorar, não de tristeza, mas de um sentimento ancestral, que arde no peito como uma brasa viva. Após esse momento UNO, uma das canções mais lúdicas da banda, “Yellow Submarine”. A cadência da canção quebra todos os paradigmas entre os diferentes telespectadores e os une novamente a uma só voz, como hinos num culto de uma igreja batista americana que louva com fervor: “We All Live in a Yellow Submarine”.
Outra vez o dono da bola é Lennon, que canta uma sequência de três músicas em uma só (Golden Slumbers/ Carry That Weight/ The End). Logo em seguida, a banda sai do palco e quem entra em cena novamente é o Bloco Afro Circo e a Afro Orquestra, renovando os ares com muita vida e cores em meio a suas coreografias exaustivamente ensaiadas. Eles tocaram duas músicas instrumentais, “Eleonor Rigby” e “Pepperland”, e esse foi um dos momentos mais bonitos do espetáculo. O Afroreggae conseguiu mostrar muita competência nessas duas canções. Se, até então, alguém não tinha se atentado à maestria do grupo, dessa vez não sobrou um cidadão de braços cruzados, eles encantaram e ganharam toda a atenção da plateia.
Já com mais de uma hora e meia de espetáculo, All You Need is Love está de volta e, acompanhado pela orquestra e pelas encenações, chega ao palco com oito pedras na mão. Começando com “Blackbird”, emendando em “Because”, ganharam outra vez as palmas, brados e assobios. Houve um momento maravilhoso durante a canção “Come Together”, que teve envolvimento completo com a dança teatral do Afroreggae. Na opinião do resenhista, esse foi um ponto chave do espetáculo, pois logo em seguida tocaram “Revolution”, “I’m The Warlus”, “My Sweet Lord” e “Power To The People” – todas acompanhadas pela orquestra – que fizeram cama para a cartada final.
“Hey Jude” foi uma das mais belas canções já gravada pelos Beatles, mas vê-la sendo tocada ao vivo pela banda cover oficial dos Beatles no Brasil, foi como ascender aos céus. Por um momento fui arrebatado e já não conseguia, depois de 2 horas de espetáculo, aceitar que aqueles não eram os Beatles. Os figurinos, as vozes, a compostura no palco, os instrumentos, a perfeita execução das músicas e o espírito explosivo de “Hey Jude”, me levaram para os anos 60 e me fizeram me sentir num show dos Beatles. Quando a canção parecia ter chegado ao fim, e as cortinas se fecharam, a música volta com toda a força, abrem-se as cortinas, a banda puxa o famoso “na, na, na” que finaliza a canção e me vejo, junto com todos os presentes, cantando alto com toda alegria que não via em mim a muitos shows, aplaudindo de pé aquela apresentação incrível.
Confesso que quando o som definitivamente terminou e as cortinas vermelhas se fecharam novamente, levei um tempo para transportar minha mente para 2016 e entender que eu não estava num show dos Beatles, e que era preciso ir embora e voltar pra casa. Minha vontade era de ficar ali por mais algumas horas e cantar o repertório completo dos Beatles ao som de All You Need is Love e Afroreggae. Só lá fora, ao sentir o vento gelado no rosto, consegui me recompor e voltar à realidade paulistana. Confesso também, que depois do calor do espetáculo, voltei pra casa quase sem me lembrar do frio que invadia a alma. Só havia uma certeza dentro de mim: eu precisava comprar o ingresso da próxima apresentação de Beatles Na Favela.
PS: Durante todo o show, eram reproduzidos vídeos, animações e fotos no fundo do palco, muitas vezes era possível reconhecer o cenário das comunidades carentes do nosso país. Não a todos, mas a um bom conhecedor do repertório dos Beatles, talvez seja possível fazer uma relação das letras com o que nos dizem os cenários projetados ao fundo. Há um tipo de semelhança viva entre as letras que falavam do cotidiano difícil dos jovens ingleses dos anos 50/60 e o cotidiano do jovem periférico brasileiro moderno. Há também uma mensagem profunda de amor ao próximo nas letras de Lennon. Há esperança nas letras de Paul. Talvez seja essa a herança deixada pela mensagem do espetáculo. A resposta para os problemas sociais só poderão ser encontradas no amor ao próximo e na esperança da construção de um mundo melhor. Um mundo onde os outros se respeitam acima de tudo e, a ganância e individualidade dos homens sejam vistas como o real problema.