“Se tiver meio milhão sobrando, você pode demolir e começar a reconstruir de novo”. Assim se ilustra o tom da incompreensível realidade em meio à qual Courtney Barnett imergiu liricamente seu aclamado álbum Sometimes I Sit And Think, And Sometimes I Just Sit, tomando de assalto o mundo do rock em 2015, e que se apresenta em novembro naquele que pode ser o show do ano em São Paulo. A frase, surgida de forma tão estarrecedora quanto natural em meio à conversa fiada entre corretor e cliente no subúrbio de Melbourne, foi a inspiração para Depreston, faixa da aclamada bolacha.
Orgânico, o sucesso de Barnett tem mais de uma explicação. Primeiramente, ela e sua banda são uma máquina de excursionar. Ao mesmo tempo em que aparece na lista dos dez álbuns do ano da Rolling Stone, na playlist oficial de Barack Obama e toca em todos os talk shows americanos, não há lugar inapropriado para seus shows: de programas de rádio a festivais, passando por pequenas casas e os grandes festivais, seja na Austrália, em algum lugar do meio-oeste americano ou, agora em novembro, na América do Sul, não há lugar errado para a australiana desaguar seus versos bem humorados e de rara espirituosidade.
Assim como as letras e o jeito de tocar guitarra, a australiana transparece um certo ar atrapalhado na arte da capa de seu álbum e em seu merchandising. A estética infantil dos desenhos e seu próprio visual (camiseta surrada e boné, na maioria do tempo) aliado ao ritmo frenético dos versos (mesmo nas canções mais lentas, tudo parece, de alguma forma, ser acelerado), seu trunfo é justamente o de oferecer uma certa transição da vida para o palco sem cortes, o que faz com que suas letras consigam transcender da narrativa ordinária ao ordinário travestido de fantástico.
Oliver Paul, 20, acorda tarde e sai do bonde sem pagar a passagem enquanto seu café da manhã, engolido às pressas, se esfarela sobre sua roupa. Em frente ao computador, a epifania de quem não aguenta mais a ansiedade de estar ficando careca (ainda tem a cabeça forrada de cabelo), tampouco a correria sem sentido dessa vida que, quando tudo dá certo, leva no máximo ao dia seguinte e à vertigem existencial do eterno retorno. Tudo que ele quer é ir ao topo do prédio ver tudo pequeno na cidade e imaginar que está jogando Sim City. No elevador, ouve da senhora perfumada e carregada de botox que tudo que queria era ter a pele como a dele. Ela acha que ele é jovem demais para querer se jogar do prédio; ele acha que só queria ser um ascensorista.
A verborragia de Elevator Operator, doce e violenta ao mesmo tempo, é o autêntico grito primal de uma geração sujeita ao turbilhão de informação provido pela internet, ansiosa e deprimida pela vida precária e que vive a falta de perspectiva e um futuro que parece cada vez mais sombrio. A vida, que para a senhora do botox era um misto de rotina com estabilidade, para o jovem Oliver Paul é o contraditório coquetel da depressão millenial, quando o tédio da rotina se une à incerteza do amanhã.
Não só proficiente com as palavras, a guitarra de Barnett tem certo estilo que, após poucas audições, torna-se facilmente reconhecido, principalmente por seu aspecto rítmico (principalmente quando o twang da sua telecaster se faz presente). Mesmo nos momentos mais sutis, seu jeito de tocar, sempre percussivo, casa bem com sua voz que mais recita do que canta, e são vários os momentos em que o resto da banda não se faz necessário como, por exemplo, na bela Depreston.
Mas nem só de talento seu sucesso é feito. A opção por fundar o próprio selo, Milk Records, e tocar a carreira de forma basicamente “do it yourself” certamente ajuda a criar empatia com os fãs, o que é potencializado em suas letras. Dead Fox, segundo single de Sometimes I Sit And Think…, começa com “Jen [Cloher, sua companheira] insiste para que compremos verduras orgânicas”. Courtney, quinze anos mais nova, acha que “um pouco de pesticida não deve fazer mal”. A mistura do contraste geracional (assim como a dicotomia Oliver Paul x “senhora do botox” em Elevator Operator) e do clima cinemático dão o tom irresistivelmente intimista de suas letras.
Mulher, canhota, lésbica, millenial e independente, Courtney Barnett é aquilo que cantos mais antiquados do mundo chamariam de “tudo de ruim”. Seu trunfo, no entanto, é sua nonchalance, que orbita em torno do fato de que não faz disso a bandeira de sua música ao mesmo tempo em que não a nega. Ao mesmo tempo, suas músicas são como uma placa de vidro quente numa noite de ar gelado, condensando o espírito de uma geração na forma de versos tão despretensiosos quanto cirurgicamente certeiros, e é justamente disso que se alimenta a áurea daquela que pode ser a próxima grande anti-heroína do rock.
Serviço:
Popload Gig #46 com Edward Sharpe and the Magnetic Zeros + Courtney Barnett
Quando: 16/11/2016
Onde: Audio (Av. Francisco Matarazzo, 694 – São Paulo)
Informações sobre venda de ingressos em www.poploadgig.com