“Once I was checking to hotel and a couple saw my ring with Blues on it. They said, ‘You play blues. That music is so sad.’ I gave them tickets to the show, and they came up afterwards and said, ‘You didn’t play one sad song” (Buddy Guy)
Não houve tristeza em Caxias do Sul no penúltimo final de semana de novembro. Se houve, passou longe do largo da estação férrea da cidade. O Mississippi Delta Blues Festival aconteceu pela sétima vez e foi prestigiado por respeitosos com mais de oito décadas de vida e aprendizes com menos de um ano.
Logo após os primeiros passos dados dentro do festival você percebe que o lugar é perfeito para uma celebração da cultura blues. Uma estação férrea desativada e que agora é a casa do maior festival de blues da América Latina. Os trilhos ainda estão lá, só que em vez dos trens, são ocupados por pessoas que transitam por eles a outros palcos, como se os trilhos fossem o caminho para acompanharmos outras espécies blueseiras, nativas e convidadas.
Em todo canto da estação férrea havia blues. Seis palcos eram responsáveis por renovar esse sentimento a cada caminho percorrido. E entre os palcos, um monte de coisa para fazer. Ao lado do palco principal, casais e crianças dominavam uma fila, formada em virtude de uma roda gigante. Exposições, workshops, bazares, gift shops, leilão silencioso, barbearia e outros bons lugares para passar um tempo estavam no pacote.
Importantíssimo também: variedade gastronômica e variedade de cervejas – algo maravilhoso. Em dois dias de festival enchi o copo com (não é jabá) Heineken, Coruja Viva, Felsen IPA, Felsen Witbier, Abadessa Export, Abadessa Helles, Thor Scottish e uma Blond Ale que esqueci o nome e que foi a saideira do último dia de festival – o que, talvez, explica. Eram mais de quinze tipos diferentes de cerveja a preço médio de 8 tickets – que equivaliam a 12 reais. Aliás, os copos não eram descartáveis. Cada ingresso dava direito a um copo de acrílico de 500ml do MDBF. E esse é um dos segredos para que um festival se mantenha limpo, além de ser uma ótima lembrança.
Havia blues em todos os espaços, mas onde ele falava mais alto era no Barber Shop Stage, o palco principal do evento. Lá que o maior número de pessoas se encontrava e dividia os espaços, tudo sem empurrões ou histerias. O palco é um dos cartões-postais do evento. Poder curtir um blues com uma estrutura de som grandiosa, árvores iluminadas parecendo ainda mais verdes do que eram, próximo aos trilhos e com uma roda gigante ao fundo (e iluminada à noite) é uma experiência sonora-visual que todos mereciam ter.
Esse palco que teve, na noite de abertura, Lucille, Blues Etílicos, Nei Van Sória e Fran Duets – com a participação de Bob Stroger (guarde esse nome). A segunda noite começou com Los Mind Lagunas, fazendo o blues durante a curta e intensa chuva que caiu em Caxias. O superquarteto Guit4rs for the Blues, formado por Danny Vincent, Solon Fishbone, Fernando Noronha e Neto Rockfeller, se apresentou na sequência e mandou a chuva embora pra nunca mais voltar. A previsão era de mais chuva durante o festival, mas as guitarras foram mais fortes, dominaram o território e as levaram para bem longe, foi isso sim. Lurrie Bell, guitarrista de Chicago fez também um belo show no palco principal e Johnny Nicholas, direto do Texas, finalizou a noite com um boogie-woogie viciante.
No sábado, o palco foi aberto por outro quarteto de blues, o South America Harp Attack, formado pelo argentino Nico Smoljan, o chileno Gonzalo Araya e os brasileiros Ale Ravanello e Flávio Guimarães. O performista Robert Bilbo Walker e o gaitista Jerry Portnoy, que já tocou com Muddy Waters e Eric Clapton, tiveram o privilégio de se apresentar no momento em que o festival estava mais lotado – entre as 9 horas da noite e a 1 da madrugada. Quem encerrou o palco principal do MDBF 2014 com extrema classe foi o virtuoso Larry McCray, que fez o tinhoso com uma voz poderosamente arrepiante, uma Les Paul, um OCD e um wah-wah. O show do guitarrista do Arkansas ainda teve a participação de Lazy Lester e Fernando Noronha como bônus.
Com seis palcos disponíveis, é certo que deveria haver um principal, mas também um pessoalmente preferido. Escolho o Front Porch Stage, palco responsável pelos quatro melhores momentos que tive no festival (Robert Bilbo Walker, Larry McCray, Johnny Nicholas e Bex Marshall) e pelos dois melhores momentos que perdi (Bob Stroger e Lazy Lester). Mesmo tendo acompanhado os dois últimos em outros palcos, é nesse em especial que o blues acontece.
O Front Porch Stage é inspirado em um típico casebre de madeira do sul dos Estados Unidos. O palco é uma varanda tradicional, com uma porta de madeira ao fundo, janelas, degraus e uma iluminação incrível. É muito intimista o contato entre artista e público, como se estivéssemos assistindo aos músicos tocando em suas próprias casas. A distância entre os músicos e a plateia também é mínima, a decoração é toda inspirada e o terreno onde está o palco é em um declive, facilitando a visão para todo mundo. É tudo muito próximo e a gente sente o ritmo pulsando de uma forma muito intensa por ali.
Foi nesse palco que vi pela primeira vez Mr. Robert Bilbo Walker, tocando um country-rocknroll-blues puríssimo e simplíssimo. Bilbo tem 77 anos de idade, toca com um feeling contagiante, uma pegada peculiar de quem não usa palheta e tem uma performance de palco que impressiona. Bilbo, nascido no Mississippi, tocou canções próprias e covers consagrados como Lucille, Mustang Sally e Johnny B. Good. Em alguns momentos ele faz a famosa duckwalk e, já ao final do show, saca fora a alça do instrumento e continua tocando apenas com a mão esquerda, segurando a guitarra na vertical e dançando com a mão direita na cintura. Pode imaginar a cena. Larry McCray, que finalizaria o palco principal do Mississippi Delta Blues Festival 2014, tocou na noite anterior na “casinha”, logo após Robert Bilbo. Balançou tudo e provou que a estrutura de madeira é bem resistente.
Na última noite, o Front Porch Stage recebeu o boogie-woogie de Johnny Nicholas, que fez um show muito mais divertido do que no próprio palco principal, na noite anterior. O auge, no entanto, foi com a britânica Bex Marshall. Essa é uma das coisas legais do MDBF. Descobrir que existem muitos músicos pouco conhecidos e que mandam bem demais. Bex Marshall apaixonou o público – e se apaixonou por ele. O que as cordas vocais dessa inglesa emite é de arrepiar até os mais insensíveis. O repertório autoral é recheado de blues swingado, impossível não se contagiar com o clima e com a presença inspiradíssima de palco. Mandou também alguns covers, mas foi especialmente em Piece Of My Heart que meus olhos lacrimejaram. Eu ouvi a Janis, cara! Após mais algumas declarações de amor à plateia e alguns shots, Bex tocou guitarra deitada, flutuando pelas mãos do público que a ergueram e a carregaram durante alguns minutos. Não é um exagero, aconteceu mesmo.
Até aqui já perceberam que falei de músicos que tocaram mais de uma vez. Esse é um dos acertos do festival. São vários palcos, e neles vários músicos repetem os shows em outras ocasiões. Foi graças a isso que pude acompanhar Bob Stroger tocando no All Aboard Stage, um palco peculiar, fixado bem em frente à estação e com uma arquibancada para o público curtir o show sentado. Além de Bob, ali tocaram vários grupos de blues do Rio Grande do Sul – Pacific 22, Cristian Rigon & Banda, Rola Stones, It’s So Blues, Delta Jam, Electric Blues Explosion, Gordini Blues Band e Ale Ravanello Blues Combo.
Tinha também o Magnolia Stage, um palco em homenagem à flor tradicional do Mississippi, ou, às mulheres do blues. Foi nesse palco que Bex Marshall tocou na segunda noite do festival. Jai Mailano, de Austin, a argentina Flor Horita e as brasileiras Fran Duarte, Marina Garcia, Dani Montuori, Cluster Sisters, Taryn Szpilman e Luíza Casé foram as outras pétalas da Magnolia. Ao lado desse palco estava o Mississippi Delta Blues Bar, um lindíssimo bar de blues que funciona no local o ano todo. Era lá dentro que ficava o MS Stage Clube do Blues, palco que reuniu diversos músicos em jams, formações flutuantes, improvisos e demais coisas não planejadas. Mais ao lado estava localizado o Folk Stage, onde músicos gaúchos faziam um som tranquilo, já bem próximo à entrada/saída do festival.
Foi um final de semana fantástico. O blues, para muitas pessoas é sobre tristeza, mas pessoalmente sempre o interpretei como uma forma de espantar essa tristeza, enfrentando-a e superando-a ao cantarmos sobre ela. É por isso que passei o festival inteiro com um sorriso de palco a palco. Quem é fã de blues se diverte muito e quem pouco conhece certamente passa a admirar mais o gênero depois dos três dias de festival. O Mississippi Delta Blues Festival serve como exemplo e tem muito o que ensinar a outros festivais. E nós, muito o que esperar pelo próximo.