Da estilista italiana dos anos 1920 às tendências das ruas de Tóquio
“A história é escrita pelos vencedores”. A frase do escritor e jornalista George Orwell diz muito sobre diversos personagens que permanecem, até hoje, um pouco renegados pela fama e pelas memórias da maioria das pessoas. É o caso de Elsa Schiaparelli, principal “rival” de Gabrielle Coco Chanel, que mudou radicalmente a moda e trouxe valores que são admirados até os dias atuais.
Caminhando em outra direção da eterna diva da moda, Elsa Schiaparelli propunha criações ousadas e exageradas, que colidiam justamente no limiar entre a moda e a arte. Vestidos com lagostas estampadas e um chapéu em forma de sapato compõem as “excentricidades” da italiana de alma francesa. Nas palavras de Chanel, “uma italiana que faz vestidos”, em um tom de desprezo.
Moda e Arte
Essas características de sua personalidade a aproximaram de grandes artistas de vanguarda da época como Marcel Duchamp, Jean Cocteau, Christian Bérard e, principalmente, Salvador Dalí com seu surrealismo e perfil estético marcante. Com o último, Schiaparelli trabalhou em conjunto e produziu peças a partir de criações do artista.
Elsa Schiaparelli pode não ter se dado conta naquele período, mas ela talvez tenha promovido a primeira abertura da rigidez da vestimenta às possibilidades de expressão e liberdade de várias gerações. Afinal, suas loucuras foram as responsáveis por abrir espaço para que as mais diversas gerações conseguissem usar e abusar das roupas e estilo, quebrando da mesma forma paradigmas sociais e causando grandes impactos sociais.
Eram os anos 1920 e muito se discutia sobre o papel da mulher e seus anseios. Se Chanel forneceu elegância, praticidade e liberdade no guarda-roupa feminino, Schiaparelli já pensava nas mulheres que se vestiam para elas mesmas, com roupas fortes e que passavam longe do padrão “aprovado pelos maridos” e pela sociedade da época.
As Inovações de Elsa Schiaparelli
Mas não é só de loucuras artísticas e surrealistas que a moda de Elsa Schiaparelli era feita. Ela foi uma das principais protagonistas no uso de cores nas roupas e na exploração de uma paleta que fugia dos tons tradicionais. Reza a lenda que, ao avistar um tom de rosa que se identificou muito, o batizou de “shock”. O “rosa shock” de Schiaparelli entrou para a história e denominou esse tom até os dias de hoje.
Além disso, a aproximação da moda e da arte foi sempre um fator produtivo para ambas as partes. O amor de Schiaparelli por esse mundo trouxe diversos elementos aos desfiles, que ganharam cenário, música, ambientação e viraram o show que conhecemos hoje ao apresentar as propostas de marca nas semanas de moda.
Nas coleções, Schiap acrescentava diversas inovações como o uso de tricô em diversas peças e a manga pagode, que foi lançada em 1933 e permaneceu como uma tendência dominante até a criação do New Look de Christian Dior, em 1947. Ao contrário da concisão e simplicidade de Coco, a estilista usava muito do excêntrico e incomum, quase performático e com forte aproximação do teatro e das artes em geral.
E em tempos da necessidade de se olhar para o desperdício e o excesso de consumo, grandes vilões que assombram o mundo da moda, Schiaparelli já apresentava um estilo de produção que modificava totalmente essa visão. Ao apostar no conceito de cada peça e coleção, ela se opunha diretamente a uma visão utilitarista e industrial da moda, focando-se principalmente na produção artística e experiência do consumidor com suas criações. É o caso de coleções inspiradas pelo circo, astrologia, música, fundo do mar e a Comedia Dell’Arte.
Elsa Schiaparelli hoje
Sua relevância é notória principalmente para quem produz moda e quem trabalha no ramo. Para muitos é referência até nos dias de hoje, sendo o principal expoente fashion dos anos 1930 e 1940. Não à toa seu legado foi comemorado em uma exposição do Metropolitan Museum de Nova York, no qual celebraram suas criações e um “diálogo impossível” com Miuccia Prada, outro nome italiano de peso.
Hoje a marca permanece com o mesmo nome, mas com produção de outros estilistas, que buscam manter a identidade da criadora com a renovação constante. O retorno da Maison se deu em 2014 com uma coleção apresentada na Semana de Alta-Costura de Paris, a primeira desde 1954. Antes disso, em 2013, a marca ganhou ainda uma coleção assinada por Christian Lacroix no museu Les Arts Décoratifs, mantendo a forte inspiração no surrealismo.
Seria impossível imaginar uma moda sem a impactante presença dessa criadora. Principalmente ao reparar em tendências jovens e recentes que claramente beberam dessa fonte, como estampas variadas e todo o estilo dos anos 80. Desde camisetas estampadas com bigodes até elementos do pop art, tudo isso só foi possível graças a sua ousadia e visão, que tornaram a sisuda e restrita moda em algo com que se pode brincar e se expressar livremente.
Fazendo com que a arte desbravasse campos ainda não explorados, como é o caso da vestimenta, a estilista possibilitou que as roupas também fossem usadas como um meio comunicador de anseios e questões extremamente pessoais. Diferente do que acontecia antes, com a indumentária padronizada e que competia claramente à esfera pública. A transmissão da individualidade invade o que antes era totalmente dominado pelas regras sociais estabelecidas.
É essa expressividade que desponta diversas tendências de moda de rua, que trazem a potência de transmitir o estilo de um período, de uma geração e de uma forma de pensar. Seja na bolsa em formato de boca lançada por Elsa Schiaparelli ou no estilo de tribos das ruas de Harajuku em Tóquio, na qual jovens extrapolam em looks mirabolantes. Schiaparelli já dava voz ao que seria elucidado por filósofos como Walter Benjamin, da separação cada vez menor entre o público e o privado na modernidade.