O exercício de ver cinema como arte é fascinante. No entanto, uma segunda função – ou um complemento à primeira -, é seu trabalho impecável de retratação da nossa realidade e como ferramenta antropológica e social.

O cinema vem da fotografia, e assim como ela, imortaliza em imagem o que fomos, o que somos e palpita sobre o que seremos – ou o que queremos ser. E cinema e fotografia, assim como qualquer outra arte, tem sua interpretação variada de acordo com o contexto a qual é inserida e a bagagem cultural de seu apreciador.

Esta semana fui submetido a dois filmes diferentes, mas que assistidos em um intervalo de um dia revelaram grandes semelhanças e questionamentos. O primeiro é um documentário: “O Sal da Terra” (2014), dirigido por Wim Wenders e Juliano Ribeiro Salgado e que conta um pouco da história de Sebastião Salgado, o já consagrado fotógrafo brasileiro que viveu sua vida retratando o mundo em fotografias em preto e branco. Salgado se destaca pelo olhar sagaz de suas imagens e pela bravura de seus ensaios. Ele esteve aonde a história acontecia, viu de perto a histeria de Serra Pelada, a miséria na Etiópia, o genocídio em Ruanda e documentou tudo. E isto, quando eternizado em forma de arte e apresentado ao público, dói.

Não há como sair bem do cinema depois de uma experiência de duas horas assistindo a este documentário. Wenders opta por retratar o fotógrafo em si, não por sua biografia cronológica, mas por meio de sua arte. Salgado é o que fotografa e não o que vive. A partir disso, inclusive, é curioso notar que o filme só ganha cor quando a vida do fotógrafo é contada. Quando que, ao partir para o seu ofício, o tradicional preto e branco de suas imagens volta a imperar na tela. Os relatos contados pelo próprio Salgado e que “invadem” as fotografias parecem demonstrar isso também. Sebastião Salgado se funde com sua arte. Ele e a fotografia são sinônimos.

Os relatos inclusive, aprofundam ainda mais o olhar cruel que só a imagem já transmitia. O depoimento forte, de fala pesada e os olhos cansados transmitem toda a dor que aquele homem sentiu durante tantos anos e que se fez presente por meio de sua arte.

Como um todo, o serviço social prestado por Salgado é importante e precisa ser visto. Atualmente o fotógrafo volta de seu trabalho mais primoroso, Gênesis (2013). Como ele próprio diz, Gênesis é uma homenagem ao Planeta Terra. Salgado viajou pelos cinco continentes buscando lugares que não sofreram nenhum intervenção humana desde o princípio de tudo. É uma obra apaixonante, impecável.

No entanto, seus trabalhos antigos, como “Êxodos” (2000) e “Sahel: O Homem em Agonia” (1986), merecem muita atenção e motivam esse texto. Ali temos o extremo da miséria humana. Nada pode superar tanta dor e desilusão. É por meio de obras como estas que nos damos conta do quão insignificantes e pretensiosos somos e que temos muito a evoluir do ponto de vista humano.

Essa questão leva ao segundo filme assistido, o argentino “Relatos Selvagens”, de 2014. Nele o diretor Damián Szifron questiona a que ponto chegamos quando enfrentamos situações limites. O cenário do filme é a nossa sociedade atual, nosso cotidiano, o dia a dia do ser humano no século 21. O roteiro é dividido em seis história distintas. Passageiros em uma viagem de avião, um restaurante de estrada, um pneu furado em uma rodovia, um cidadão comprando uma torta, um milionário negociando com seu advogado e um casamento. Todas as histórias levarão a situações limites, onde os instintos mais selvagens dos protagonistas, por virtude das ocasiões expostas, serão aflorados. A direção de Szifron é extremamente competente e o clima de tensão crescente do filme consegue a incrível façanha de atingir um clímax eufórico em todas as cinco histórias. O diretor consegue muito bem e de forma rápida (visto que as histórias são curtas) apresentar seus protagonistas, criar uma certa intimidade com o público e conduzir a história ao seu término. Ao mesmo tempo que quando passamos de uma história para outra, conseguimos nos desprender rapidamente da empatia criada pelos antigos personagens, muito em virtude da também rápida ligação com os próximos. Uma aula de roteiro e edição.

No entanto o trunfo de Szifron é justamente na explosão dos personagens. Não à toa, cada um deles é apresentado como um animal no início do filme. Em Relatos Selvagens, os humanos em questão, mesmo engomados, de terno e gravata, vivendo em uma sociedade, em tese organizada, liberam seus instintos mais pré-históricos e vulneráveis. Raiva, vingança, desejo de morte, ganância, ódio, tudo está ali, escondido, mas que o diretor dá a entender que pode ser acionado de forma absurdamente simples. Como um simples apertar de botão, se ligado a sequencias de dinamite tem a capacidade de implodir um prédio gigantesco. A sociedade por nós criada então serve como uma fachada, uma tentativa de nos contermos e protegermos de nós mesmos. Condutas, regras, normas, bom senso, não são nada mais que medidas para controlarmos nossos próprios instintos que carregamos de nosso ancestrais.

E aí voltamos para “O Sal da Terra”, e os relatos feitos por Salgado na África. Alí esta retratado não centenas, nem milhares, mas milhões de vidas abandonadas e mortas. As causas são fome, miséria, doenças diversas, descaso, falta de compaixão, desinteresse, esquecimento. A África foi e continua sendo um continente abandonado ao acaso do destino. E não há como negar que a culpa seja minha e sua. Não digo aqui que somos mal intencionados ou optamos por isso. Apenas não demos a devida importância. Não tenho dúvidas de que, se os mesmos massacres ocorressem na nossa cidade teríamos uma visão diferente dos fatos. A questão então é que o nosso lado “humano” ainda não evoluiu a ponto de atravessar o Atlântico. Nesse caso, ainda temos muito instinto selvagem para queimar.

Colocamos isso nos contextos de hoje, com políticos institucionalizando o caixa 2, dirigentes desviando dinheiro de doações para uso particular, estatais transbordando de corrupção, sem falar as inúmeras páginas policiais com crimes estúpidos e fúteis e temos aí a verdadeira visão do que somos. Ok, soa um pouco pessimista, mas não deixa de ser um alerta de que não somos superiores a ninguém e a nada. Talvez um dia seremos (tenho convicção de que seremos), mas até lá, de alguma forma precisamos aprender a conviver com esses instintos selvagens que ainda fazem parte de nós. É uma pena que até essa resposta surgir, um continente inteiro precisa pagar a conta.