Pablo Villaça, um importante crítico de cinema brasileiro tem uma frase ótima: “A maioria das pessoas enxerga somente 20% de um filme”. A justificativa é de que a maior parte do público usa o cinema para entretenimento, onde as principais ferramentas necessárias para entreter são uma boa história e uma trama bem desenvolvida. As demais características são acréscimos que engrandecem a história, como uma boa fotografia, bons cenários, bom design de produção, que tornam o filme o mais próximo da realidade que ele propõe.
Só que a arte cinematográfica conta com muitos outros fatores que ajudam a compor uma história e que prendem a atenção do expectador. Muitos desses fatores são desconhecidos de grande parte do público que só os percebe por meio do inconsciente, dos sentimentos que vai desenvolvendo durante a exibição do filme. Trata-se daquele frio na espinha durante uma cena de suspense, ou daquela emoção incontida quando uma tragédia acontece. Para conseguir provocar esses sentimentos no espectador o cineasta faz uso de inúmeras técnicas de filmagens que interferem diretamente nos sentimentos do espectador. A composição de todas elas resulta em um filme bom ou ruim.
No entanto, a magia do cinema faz seu efeito quando, além de perceber as emoções emitidas por um filme, você também as vê em cena e entende o que o diretor fez para que você acompanhasse mais profundamente o que ele pretendeu passar.
Por exemplo, quando um diretor filma um ator de baixo para cima (o chamado contra-plongeé) ele dá um tom de grandeza a este personagem. Hitler, em toda a publicidade alemã durante a 2ª Guerra era filmado em contra-plongeé, com a ideia de passar a sensação de liderança. Olhávamos Hitler como uma plateia admira um orador.
De maneira inversa, um ângulo de cima para baixo, reduz a importância do personagem. O exemplo pode ser dado com o próprio Hitler, no filme “A Queda – As Últimas Horas de Hitler” de 2004. Na derradeira cena, quando o líder nazista se vê acuado pela iminente derrota, ele se reúne com seus oficiais em uma sala minúscula. Hitler é o único que está sentado em cena, todos os demais estão de pé. A câmera o filma pela visão dos demais, assim, o grande líder, tantas vezes idolatrado, agora se vê cercado por semblantes de derrota e sem condições de reagir. A sala diminuta e repleta de pessoas aumenta a sensação de impotência, e os ângulos, filmando o ditador por trás dos demais e por vezes “preso” em cantos da tela colaboram com a ideia de que o conforto de Hitler no poder estava acabando. Por fim, as cores pálidas e sem vida confirmam que naquele momento não existe mais esperanças para o terceiro Reich.
São esses detalhes que transformam o cinema em arte, e que faz duas pessoas que assistiram ao mesmo filme, saírem da sala de cinema com reflexões diferentes sobre a peça assistida. Qual das duas teve uma melhor experiência? Eu levo essa pergunta um pouco mais adiante e amplio o questionamento não somente para um filme em si, mas para a vida.
Assim como em um filme, cada uma de nós tira nossas próprias reflexões e análises sobre tudo o que vemos e sentimos durante a vida. E assim como o cinema, a vida também nos oferece a oportunidade de viver sua totalidade. No entanto em muitas vezes é a nossa própria visão limitada que impede um olhar mais profundo sobre o todo, e assim como no cinema, acabamos em grande parte do tempo, vivendo apenas 20% de nossa existência.
Acontece que a vida também possui ferramentas para que o poder de compreensão sobre si mesma seja ampliado. No entanto não existe uma fórmula mágica para isso (como muitas vezes o cinema possui). Essas técnicas alteram muito de pessoa para pessoa, e o que pode fazê-lo um diretor de sucesso ou um mero “filmmaker” de produções “enlatadas” é principalmente, o seu olhar sobre o mundo.
O que não pode acontecer é vivermos a vida no piloto automático, como assistimos a um blockbuster americano, do qual já sabemos o final da história assistindo a primeira cena. A filosofia Zecapagodiniana do “Deixa a vida me levar” é muito perigosa. Em outro sentido essa mesma frase pode muito bem significar “Eu não sou o dono da minha própria vida”.
Quando uma pessoa não percebe todos os ricos detalhes de um filme, dizemos que ela teve uma experiência pobre com o filme. Faço essa mesma analogia com a vida. Uma vida sendo simplesmente “assistida” ou “mal dirigida” é uma experiência muito pobre, até triste, ouso dizer. E isso não tem nada a ver com status social ou capital financeiro (muitas vezes as pessoas mais tristes são aquelas que estão rodeadas por dinheiro e afastadas de amigos).
A vida reserva surpresas a todos e descobri-las, assim como em um filme, revela-se uma experiência fascinante. Como por exemplo concluir uma leitura que te abra os pensamentos, viajar para um local desconhecido e voltar carregado de uma cultura diferente, ir ao show da banda favorita e receber descargas de adrenalina, acompanhar um jogo de futebol do time do coração, fazer um jantar para aquela pessoa que você ama, rir com pessoas que te fazem bem.
Esses são exemplos próprios, é obvio que para outras pessoas alguns deles não passariam de programas tediosos ou estressantes. A questão aqui é você compreender o filme a seu modo, ou curtir a vida da maneira que mais lhe agrade. Sem embaraço de cantar pagode por que a maioria não vê graça, sem vergonha de sair na rua de chinelo havaianas por que todos vão reparar, ou não expressar sua religião ou posição política com medo de repreensão.
Quando um cineasta obtém sucesso com seu filme, dizemos que ele conseguiu transpassar a sua visão de mundo, o seu olhar, por meio de sua obra. É esse olhar singular do cineasta, o principal fator de tornar a história ali contada única e propriamente autoral. Em uma cena em que temos um protagonista chorando a morte de um familiar, por exemplo, podemos simplesmente faze um close de sua cara, escolher uma música emotiva e deixar as emoções rolarem. Ou filmá-lo sozinho, em uma sala escura com um porta-retrato do familiar em uma estante e com a câmera se afastando lentamente, representando todo o luto e a ausência que a perda do ente provocou na pessoa. São duas formas de representar uma mesma ideia. A primeira, simples e fácil, e a segunda, totalmente subjetiva e mais desenvolvida. Qual você prefere acompanhar é opção exclusiva sua.
A diferença da vida para com o cinema é que nós próprios somos o diretor, o diretor de fotografia, o editor, o protagonista e o contrarregra. As escolhas de produzir um ótimo filme passam todas pelas nossas mãos. Inclusive a de preferir dirigir cenas simples e fáceis, como mostrada acima. A diferença é que você pode acabar por compreender somente 20% de toda a sua história. Para alguns isso é bom, a vida acaba ficando mais leve, mas zecapagodiana mesmo. Para outras, uma chance de incríveis descobertas totalmente desperdiçada.
Imagens do filme A Árvore da Vida (2011).