“Maria Bethânia, please send me a letter

I wish to know things are getting better

Better, better, betta, beta, Bethânia” *

(Trecho da música “Maria Bethânia”, na qual é feito um trocadilho com a transformação da palavra “better” – “melhor” em inglês – até se transformar em Bethânia: “Maria Bethânia, por favor me mande uma carta, preciso saber que as coisas estão ficando melhor, melhor, Bethânia.”)

 

Era uma vez uma mulher. Não, era uma “voz” de uma mulher. Assim essa história deve começar. Maria Bethânia Viana Teles Velloso ganhou notoriedade nacional quando substituiu Nara Leão em 1965 no show musical “Opinião”. Foi só a garota de 19 anos subir ao palco e entoar “Carcará” para que a plateia tivesse acesso a uma das apresentações mais cruas e cruéis, ainda que doce e sensível, para a fome e a seca no Nordeste, ao mesmo tempo em que acusava a falta de liberdade artística da época.

Caio Fernando Abreu escreveu a seguinte definição para ela na contracapa do disco “Simplesmente o melhor de Bethânia” (Polygram, 1988): “Bela de um jeito que não é comum ser bela, cantora como não é comum ser cantora – nesse desregramento de padrões estéticos, Bethânia funde a aspereza de onde começa o Nordeste com o requinte dos blues de uma Billie Holiday”.

Provavelmente, se não tivesse sido assim, teria sido de outro jeito. Ela estava predestinada a alcançar o ouvido das mais importantes pessoas da indústria da música e, posteriormente, um grande público. Mas esta foi a melhor maneira que ela poderia despontar para a MPB, falando sobre a realidade brasileira. Desde seu primeiro “ato”, Maria Bethânia juntou poesia, música e dramaticidade.

Talento é de família

caetano veloso maria bethania
Foto: Instagram

As artes sempre estiveram presentes na casa de Bethânia. Seu pai, Zeca Veloso, e sua mãe, a saudosa Dona Canô, sempre tiveram interesse em música e Literatura, despertando nos filhos a paixão por essas formas de arte. Não à toa, dois dos irmãos mais velhos de Bethânia, Mabel Velloso e Caetano Veloso, também despontaram por esse viés. Mabel, uma importante poetisa, e Caetano, escritor e um dos músicos de maior sucesso no Brasil (e fora do país).

A respeito de Caetano, aliás, Bethânia tem um papel fundamental na carreira do irmão. Foi para acompanhar a irmã mais nova que ele foi até o Rio de Janeiro, e logo na gravação do primeiro álbum da cantora, ela exigiu gravar uma das composições de seu irmão, “É de manhã”. Graças ao seu sucesso, ninguém poderia dizer não. Chico Buarque, amigo e um dos compositores preferidos da diva, já disse: “é impossível dizer não para Maria Bethânia”.

B de Brasil, B de Bethânia

Maria Bethânia (3)
Foto: Pinterest

Se hoje ela não canta mais “Carcará” é mais por não acreditar que tenha o mesmo efeito do que por crer que o Brasil não precisa mais de sua maravilhosa interpretação. Em entrevista recente à Folha, ela disse:

“O problema era a burrice das pessoas. Essa coisa comum: faz sucesso, só quer ouvir aquilo. E eu não estou para isso. Quero cantar o que eu quero, o que me dá vontade. Deus me deu voz e liberdade para isso.”

Liberdade, inclusive, é palavra de ordem para a cantora/intérprete. Sem medo de perder contrato ou acabar com sua carreira, nunca colocou o dinheiro à frente de sua autonomia artística. Disse que aprendeu com o pai, “dinheiro o homem tem que ter o que lhe seja útil, nenhum vintém a mais”. Isso permitiu que renunciasse projetos grandes para fazer aquilo que era menor, mas mais verdadeiro.

Em seu último álbum, “Meus Quintais”, já pela gravadora Biscoito Fino, ela afirma este lado para não deixar dúvidas nestes 50 anos de carreira: ela faz mais do que quer, ela faz aquilo que ela sente. Mesmo planejando um show especial em celebração das cinco décadas ativamente na música, ela sentiu que era o momento de olhar para os “quintais de sua terra”, produzindo um retrato do sertanejo, dos índios, dos caboclos e do povo genuinamente brasileiro.

Dos Santos aos Orixás, ela absorve tudo o que acontece ao redor. Em “Carta de Amor”, música de seu álbum anterior (“Oásis de Bethânia”), ela recita os versos de autoria própria: “eu posso engolir você, só para cuspir depois”. E é isso que ela faz a cada obra, seja ela em estúdio ou ao vivo. Em meio ao árido das artes, ela nos oferece seu Oásis. Em meio às grades do medo e resistência ao novo, ela se assume libertária, bebendo diretamente de poetas marginais e populares, até os mais clássicos, como o menino de seus olhos, Fernando Pessoa.

Não há Bethânia sem Poesia

Maria Bethânia (4)
Foto: Pinterest

Uma das grandes discussões no mundo das Letras é a respeito do que é Poesia e como ela se enquadra em Literatura. Para muitos, a resposta é simples: não se enquadra nem na Literatura, nem em uma forma. Sonetos? Rimas? Versos? Esqueça. A Poesia é algo mutável e seu significado pode ser muito mais abrangente do que na área acadêmica. Ou seja, nada poderia definir melhor Maria Bethânia. Classificada como cantora, intérprete ou até mesmo atriz, não há forma que melhor defina a musa da MPB do que “poética”.

Cada música em seu show ou álbum é pensada por ela a respeito da mensagem e do valor de cada palavra. Talvez não exista artista tão preocupada com semântica do que ela, até mesmo nos textos escolhidos para serem recitados em cima do palco.

Em 2013, Bethânia foi convidada para recitar Fernando Pessoa ao lado da professora de literatura Cleonice Berardinelli, uma das mais importantes estudiosas do poeta português em todo mundo. Do encontro das duas apaixonadas por Pessoa e seus heterônimos, surgiu a ideia do documento “O vento lá fora” (2014), no qual é possível ver o que a Poesia é para Bethânia e os seus efeitos no seu dia a dia. Ela já assumiu “não leio poesias antes de dormir, me deixa agitada”.

Mas se tem um ponto que todos devem concordar é que tanto as obras poéticas quanto Maria Bethânia caem muito bem aos amores e paixões. A intensidade das duas “não-formas” de arte permite que as pessoas apaixonadas, seja pelo seu par ou pela vida, possam se sentir representadas e embaladas pela musicalidade, seja para revelar o início do amor ou o término do mesmo – existe melhor interpretação de “Olhos nos Olhos” do que a de Bethânia?

50 anos de festa

Maria Bethânia (5)
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Para coroar 50 anos indizíveis de histórias e sentimentos, ela fez o que melhor sabe fazer: um espetáculo. “Abraçar e agradecer”, como foi nomeado, une textos, poemas, músicas e performances da cantora (mesmo que essa palavra a limite) que conquistou o Brasil e nunca saiu de cena.

Em 2 horas de show, ela faz o impossível: retoma grandes sucessos e leva seu público das lágrimas ao riso, da melancolia das músicas românticas até a alegria de um samba de roda. Em 2 horas ela entrega ao seu público – composto por pessoas de todas as idades – aquilo que ela tem de melhor: ela mesma.

E sim, não é uma tarefa fácil nem tentar resumir sua história em um show de 2 horas, ou um texto (ousaria dizer até mesmo um livro). Pois, como a Poesia, Bethânia é muito do que se diz, mas também é um tanto do que se deixa subentendido, ainda por dizer. E o que todo brasileiro deve esperar é que ainda se tenham muitos anos de carreira por dizer para a diva que sempre esteve acima de qualquer movimento ou gênero que não fosse aquilo que saísse do coração.

* (Trecho da música “Maria Bethânia”, na qual é feito um trocadilho com a transformação da palavra “better” – “melhor” em inglês – até se transformar em Bethânia: “Maria Bethânia, por favor me mande uma carta, preciso saber que as coisas estão ficando melhor, melhor, Bethânia.”)