Era 1995 quando o Brasil começava a descobrir os domínios da internet, os americanos enfrentavam o terror, o Grêmio vencia pela segunda vez a libertadores, o Fluminense saía vitorioso de um Fla-Flu histórico e a ciência virava de ponta cabeça, mas no mundo de Vitor Ramil só existia uma coisa naquele ano: o lançamento do álbum À Beça. Talvez existisse mais do que isso, é bem provável mas, por licença poética, diremos que só existia o lançamento do álbum que marcaria o dia em que o cantor, escritor e compositor inventaria a máquina do tempo através da gravação da música Foi no Mês que Vem.
A melodia doce e até melancólica da música embala uma letra repleta de verbos em diferentes conjugações temporais, e é aí que a invenção de Ramil acontece. É no primeiro “vou te vi” que o ouvinte é transportado para um tempo único, não se trata do futuro nem do passado dos verbos, tudo o que é narrado se passa em um espaço temporal que transcende o tempo cronológico.
É tudo aqui e agora, é o que o linguista francês Émile Benveniste chama de tempo linguístico. As teorias de Benveniste, que nos remetem aos anos de 1966 e 1974, ecoam na música lançada em 1995 e regravada em 2013, quando o artista escreveu um songbook e aproveitou para repensar sobre as músicas já lançadas, que precisavam e mereciam uma nova roupagem em meio a tanta poesia de suas letras.
Se vivemos empalavrando o mundo, Ramil empalavrou sentimentos e ainda os musicou nesta música, mostrando que o homem só se constitui na linguagem e pela linguagem, justamente como Benveniste afirmava há tanto tempo quando dizia que o homem é um sujeito intersubjetivo.
Para o jornalista Felipe Pena, há uma explicação para que uma música possa ser tão singular: “a harmonia é mais poderosa que a sintática” e, assim, lembramos com mais facilidade de uma melodia do que dos versos de um poema.
A música de Ramil nos faz validar de Benveniste à Pena com tranquilidade, nos faz até cantarolar em três tempos diferentes, nos fazendo pertencer a esse espaço temporal tão particular criado com o auxílio de sessenta e quatro verbos. No exercício da linguagem, sempre tomamos o nosso lugar de fala em oposição a alguém; no caso da música, as ideias são expressas de um “eu” a um “tu”, como diria Benveniste para explicar o processo de que fazemos uso diariamente sem sequer pensar que sempre precisamos de alguém para nos expressar.
Sempre somos o eu em direção ao tu e, com sorte, seremos o tu de alguém também. É nessa troca que empalavramos o mundo, ainda que seja apenas o nosso mundo interno com um tempo inventado somente para que nossas palavras e sentimentos caibam nele. É nessa troca que nos constituímos, nos humanizamos e tudo isso tem apenas uma via: a linguagem. Sem ela, o que seríamos? Você pode estar aí pensando que ainda pintaríamos as paredes da caverna, mas está errado, até mesmo nossos ancestrais paleolíticos usavam seus traços grosseiros e simbólicos para se expressar. Inventamos a linguagem porque vivenciar não basta, precisamos expressar para existir.
É assim que voltamos a olhar para a música de Ramil, com aquele “eu” que se apropria da língua para construir sentido através das combinações que tece em cada palavra, frase, estrofe e melodia, independente da cronologia. O tempo é o agora. Mesmo com todo jogo de palavras empregado pelo músico ao construir a letra da canção, só existe o presente para ser analisado, e esse tempo nunca é o mesmo do presente experimentado pelo autor no ato da composição nem de sua fala. Contudo, esse recorte do presente materializado na música sempre tratará de um momento vivido no agora, porque a letra da música, cantada e expressa pelo eu, tem o poder de retomar um fluxo de pensamentos e experiências narradas. O tempo linguístico é poderoso porque, de acordo com Benveniste, “manifesta-se irredutível igualmente ao tempo crônico e ao tempo físico”.
É esse “eu” criado por Ramil que transita em um eixo entre o passado e o futuro de cada verbo, sobre o único verbo no infinitivo, mas, acima de tudo, transita sobre a própria subjetividade, além de expressá-la e materializá-la em uma canção. O discurso, segundo Benveniste, provoca a emergência da subjetividade e, se a ciência descobrir que só precisa disso para construir uma máquina do tempo, a NASA (ou algum grupo científico russo) contratará músicos e poetas.