A Casa do Mancha é uma das casas mais especiais da cidade de São Paulo. É bom saber que existem lugares que vão completamente contra o dogma clássico das casas de show, instaurando uma casa (literalmente), que além do ilustre Mancha, abriga um bar, um espaço para troca de ideias e uma sala para que a apreciação musical seja total e sem as frescuras que um palco tradicional nos obrigam a aceitar.

Além de uma qualidade sonora soberba, a residência localizada no bairro da Vila Madalena, ainda reúne as bandas mais celebradas da nova cena, atualizando o repertório de ouvintes que pararam no tempo e proporcionando uma experiência de show única, domingo (24/05), por exemplo, posso afirmar que vi o Bruno Kayapy torcendo as cordas de seu baixo a menos de 5 metros da plateia!

Mas antes, vamos por partes, porque antes do trio emanar uma santa dose de “Macumba Afrocimética”, teve DaVala e o Núcleo Sujo, abrindo os trabalhos às 21:00 (sempre em sincronia com o fuso horário 4:20 de Brasília) e lançando o debutante do quarteto, que além de destilar o pensamento em conserva das mazelas sociais com flow’s inspirados e beats em motion, ainda ressalta o verdadeiro papel de uma casa que abriga qualquer expressão de arte: renovar o meio que habita.

Na Casa do Mancha - Foto Karina Menezes (1)
Foto: Karina Menezes

Foi bacana ver um projeto que nasceu na própria casa virar atração de abertura dentro de um line up com grandes bandas, promovendo o lançamento do disco com a casa lotada. Sem dúvida alguma quem estava presente notou que o quarteto destila um belo som e que a criatividade reina nas letras, bem como nas interessantes linhas de baixo de Lucas Oliveira.

Discos artesanais, cópias numeradas e pouco mais de meia hora para compreender o primeiro volume da teoria do caos que nos rodeia. Foi uma troca de ideias franca, convexa, biconvexa alguns diriam. Cristalina, sem letras miúdas, poética e que valorizou o tempo a cada cacofônico “tic” e complementar “tac” do relógio.

Davala e o Núcleo Sujo
Foto: Guilherme Espir

Foi uma noite de riqueza genuinamente nacional. O quarteto proclamou os ideais da rua, fez um brinde a nós, todos nós, até mesmo quem não estava no cômodo e depois abriu espaço para o BIKE, combo psicodélico que prega a marcha do LSD, legalizando ferramentes que possam abrir portas em nossa mente e que com toda a certeza expandiram a aura dos presentes.

A banda passa seus ideias com um esmero grandioso, são caras que nutrem um sentimento orgânico demais, fruto das raízes até do próprio som que reverberam, se esforçando para sentir, sempre imersos em notas longas, bem trabalhadas, espontâneas e que mudam nossa relação com o espaço tempo, ferramenta que Julito Cavalcante esnoba com uma classe absolutamente lisérgica.

BIKE compacto Enigma do Dente Falso
Compacto BIKE – Enigma do Dente Falso

E depois que os sinais da rede Wi-Fi/3G/4G foram perdidos, foi a hora que Bruno Kayapy escolheu para adentrar o recinto e reposicionar sua arte na cabeça de todos os telespectadores. Brilhante guitarrista, dono de uma técnica bastante peculiar e de um feeling sinuoso, fiquei particularmente curioso para saber como seria sua interação com o baixo.

E saí da casa embasbacado com aquele tradicional dogma de guitar hero, alcunha que o músico triturou e jogou no despacho de Macumba Afrocimética de maneira elementar. Sua banda, blindada com Julito (dessa vez esbanjando alquimias no baixo) e Daniel Fumega (baterista fritador da escola do Black Flag) mostrou um entrosamento grandioso e tocou o disco com uma fidelidade impressionante.

Na Casa do Mancha - Foto Karina Menezes (2)
Foto: Karina Menezes

Bruno esbanjou uma tranquilidade impressionante, algo que apenas um novo rumo criativo poderia brindar-lhe e foi bastante gratificante vê-lo emanar tal energia. Ele torcia e retorcia as cordas do groove, seu compadre mostrava os dotes de Aldous Huxley e Fumega tratava de selar a cozinha com uma levada tão suave quanto um tapa na pantera.

Todos chegaram sem frescura, mandaram um som, tomavam uma cerveja, trocavam ideias e além de boas músicas o que fica é justamente esse ambiente anti-rockstar… Vida longa ao mancha, aos parceiros do Núcleo Sujo, aos ativistas lisérgicos do BIKE e à macumba do Macaco, que relembrando um feeling de Morphine com o equilíbrio espiritual do EP “Verdão Verdinho”, nos mostra que o que vale é a vibe. Play on children.

https://www.youtube.com/watch?v=sY7ioYknXL0