Então eu corro pra internet
Sou garoto antenado e baixo o novo embalo quente
Que é de 66
— O Terno, 66
O possível próximo hype no rock já tem nome e, para ajudar (ou não!), um rostinho de bebê. É o The Strypes, um quarteto irlandês cujos integrantes possuem idades entre 14 e 16 anos. Originários de Cavan, os guris — que parecem os Small Faces — gravaram um EP com 4 faixas, tocaram em festivais locais de grandes proporções (como o Electric Picnic) e chegaram na Inglaterra conquistando atenções. Mesmo tendo se apresentado em locais relativamente pequenos, Elton John, Paul Weller e Noel Gallagher não deixaram de prestigiar os shows dos garotos. A Mercury/Universal não perdeu tempo e, numa época em que não se aposta tanto em grupos novatos, assinou um contrato de 5 anos com a banda.
Agora o detalhe: eles só tocam covers! Porém, é a banda cover mais classuda do mundo! As opções estéticas do grupo, desde visual até a seleção do repertório, passando da escolha de timbres até as respostas dadas aos jornalistas (“Só ouvimos Stones e The Who”), são tão coerentes e acertadas que eles parecem ter sido inventados! Acertam sempre tão em cheio que é difícil acreditar que seja verdade.
Todo o conceito da banda já pode ser sacado nesse EP de estréia. Intitulado Young Gifted &Blue, o disquinho traz 4 composições de blueseiros ancestrais, e são executadas em versões profundamente inspiradas nas performances de grupos de r&b britânicos da primeira metade dos anos 60, como Rolling Stones, Yardbirds, Animals, Them, Kinks, Small Faces e The Who (lembrando que os primeiros discos deles também foram todos compostos por covers nesse mesmo estilo). O fato dos Strypes iniciarem a carreira da mesma forma que tais nomes consagrados da história do rock — prestando tributos viscerais e selvagens para as raízes mais primitivas do gênero — confere um caráter ainda mais orgânico para as escolhas a banda.
http://www.youtube.com/watch?v=plBtjQekyN4
Até o videoclipe de You Can’t Judge A Book By The Cover, em clima retrô, acerta na vertiginosa — e bem produzida — opção clichê. Há também vídeos das outras músicas do EP no perfil oficial do grupo no Youtube, registrando eles tocando ao vivo — e se alternando nos instrumentos — em performances competentes, com canções convulsivas e nervosas.
Mais do que qualquer suspeita originalidade ou mistura excêntrica, o rock sempre avança de maneira muito mais coerente quando dialoga com sua própria tradição. The Strypes é a melhor banda de rhythm & blues inglês que surgiu desde 1966! São uns monstrinhos e já tocam um terror desgraçado. Imagina quando esses piás começarem a chupar droga.
Fab Four
Confira detalhes sobre cada uma das 4 faixas lançadas em Young Gifted &Blue, EP de estreia do The Strypes (clique aqui e ouça tudo no Eu Escuto).
- You Can’t Judge A Book By The Cover:
Composta por Willie Dixon, foi gravada e lançada em 1962 por Bo Diddley. No mesmo ano, os Rolling Stones registraram uma versão demo que nunca lançaram oficialmente. Em sua fase inicial, com Eric Clapton na guitarra, a faixa integrava o repertório dos Yardbirds. Foi relançada como faixa bônus do Five Live Yardbirds, disco de estreia visceral (e ao vivo) da banda.
- I Wish You Would
Originalmente um 78rpm de 1955 de Billy Boy Arnold, foi regravada no primeiro compacto dos Yardbirds, em 1964. Fez um tremendo sucesso e entrou no Top10, permanecendo no repertório do grupo até o fim. Mais tarde, foi regravada por uma série de bandas e artistas, como Canned Heat, os glams do Sweet e David Bowie, no álbum de covers Pin Ups, de 1973.
- Leaving Here:
Composta por Holland–Dozier–Holland, originalmente foi um compacto clássico da Motown, a gravadora que revolucionou a black music, dominando esse mercado desde os anos 60. Na Swinging London, os mods eram fissurados nos lançamentos da Motown. O The Who havia apresentado a música na BBC e o The Birds — primeira banda de Ron Wood — gravou e lançou a faixa em um compacto, em 1965.
- Got Love If You Want It
Lado B do primeiro compacto de Slim Harpo, de 1957, foi regravada pelos Kinks em seu primeiro LP e, ao vivo, aparece em discos dos Yardbirds. Os Rolling Stones referenciaram a canção no título do primeiro EP e LP ao vivo que lançaram, Got Live If You Want It, em 1965. Há suspeitas que, na verdade, seja um falso ao vivo, registrado em estúdio e com os gritos das fãs incluídos posteriormente.
Rock’n’Roll = Rhythm & Blues (aos menos nos primórdios)
Normalmente, se costuma apontar o primeiro compacto de Chuck Berry ou o aparecimento de Elvis como sendo o nascimento do rock’n’roll. Isso não passa de uma simplificação grosseira. Historiadores culturais retrógrados e jornalistas musicais caretas precisam de determinadas balizas históricas factuais para simplificar eventos muito mais complexos. O fato é que, até ganhar esse nome, o rock foi um gênero que ferveu por anos (ou décadas) no caldeirão musical do sul dos EUA.
O sensacional jornalista (gonzo) Nick Tosches já realizou um mapeamento etimológico no sensacional livro Criaturas Flamejantes (publicado no Brasil em formato pocket pela editora Conrad, mas que na verdade é um único capítulo de um livro maior, intitulado Country, de 1985), e mostra que rock’n’roll, como uma expressão, já existia em Vênus e Adonis (1593), de Shakespeare. Também, o termo aparecia em uma canção do mar do século XIX e em cânticos cerimoniais vodus no Caribe. Tosches garimpou mais de 35 gravações anteriores a Elvis ou Chuck Berry que traziam “rock” no título.
Nos EUA da primeira metade do século XX, havia uma distinção entre música e aquilo que os setores mais conservadores da sociedade chamavam de “race records”, que pode ser traduzido como “música de preto”. Em 1949, o jornalista Jerry Wexler (um desses heróis socioculturais esquecidos) cunhou o termo rhythm’n’blues para designar as paradas de sucesso de música negra (cuja lista era separada da dos artistas branquelos), colocando fim ao uso humilhante da expressão anterior.
Já fazia alguns anos que vários músicos negros haviam partido das áreas rurais no sul. Chegando nas grandes cidades, se adaptaram e eletrificaram o som que faziam, passando a utilizar guitarras e amplificadores. O ritmo dos antigos blues foi dobrado, ficando mais rápido. As letras gospel, que eram cantadas para Deus, foram alteradas e redirecionadas para o objeto de desejo e paixão: “Lord” virou “Love”. No circuito do rhythm’n’blues, a expressão rock’n’roll era uma gíria (e os caretas nem imaginavam) para sexo. Em português, o termo poderia ser traduzido como “deitar e rolar” (que também pode ter mil e um significados). Musicalmente, não era um protótipo: o rhythm’n’blues JÁ ERA o rock’n’roll!
Essas gravações eram lançadas por pequenos selos independentes. As lojas e gravadoras também eram separadas. A maioria do público branco não entrava em estabelecimentos que vendiam r&b. Adolescentes precisavam se esconder para ouvir estações que tocavam essas músicas empolgantes.
Mas grande jogada de marketing pra enfiar a música negra no rabo dos branquelos retrógrados foi arquitetada pelo DJ Alan Freed. Desde 1951, em seu programa de rádio e shows itinerantes com várias atrações musicais, Freed anunciava que tocava um novo estilo de música, chamado rock’n’roll. Era mentira: ele apenas tocava discos de rhythm’n’blues para uma audiência ignorante, que não sabia o que ouvia. O resto é História (com “agá” maiúsculo).
Após tocar o terror na sociedade norte-americana por cerca de meia década (1955-1960), o establishment tratou de cooptar o rock. Pressões do governo, das gravadoras, dos líderes religiosos e da sociedade civil acabaram por domesticá-lo, transformando-o em um estilo pasteurizado e bem comportado, através de artistas fabricados pela indústria da música. Os representantes originais e rebeldes — Chuck Berry, Little Richard, Jerry Lee Lewis, Elvis — foram neutralizados de diversas maneiras. O gênero dava lugar a outros estilos impostos pelo mercado musical. O evento símbolo do fim dessa primeira era do rock foi a tragédia que ficou conhecida como “o dia em que a música morreu”, quando em 1959 o avião de Buddy Holly, Ritchie Valens e Big Bopper caiu. O rock’n’roll foi sepultado junto com eles.
Uma palavrinha (ou duas) sobre R&B Inglês
No início da década de 1960, no outro lado do oceano Atlântico, já com o rock morto, uma série de adolescentes ingleses começaram a descobrir parte da riqueza musical dos EUA. Fascinados pelo blues (cujos discos eram difíceis de serem encontrados por lá), esses jovens inglesinhos ranhetas e cheios de espinha montaram bandas eletrificadas e começaram a fazer versões cover. E, da mesma forma que incontáveis grupos de rhythm’n’blues fizeram antes, eles (re)inventaram o rock’n’roll, só que na Inglaterra. São bandas como os Rolling Stones, Eric Burdon e os Animals, Eric Clapton e os Yardbirds, o irlandês Van Morrison e o Them, Pretty Things, entre tantos outros.
Pegando carona na onda criada pelos Beatles (que não eram um grupo de r&b, mas de Merseybeat, pois ouviam e tocavam o rock’n’roll em sua forma acabada, não embrionária), integraram o evento que ficou conhecido como Invasão Britânica e, nas palavras de Eric Burdon, atiraram de volta na cara dos EUA a música que eles haviam jogado no lixo.
Ao eletrificar antigos blues rurais e dobrarem seu ritmo, esses jovens ingleses estavam fazendo o mesmo que os primeiros grupos de r&b fizeram. Daí o estilo que dominou a Inglaterra na época ser denominado como rhythm & blues inglês, e que não deixa de ser uma forma de rock. Talvez a principal diferença é que, ao contrário dos americanos, os ingleses tinham uma relação mais rebuscada com a música, inclusive pelo estudo. Eram instrumentistas muito mais técnicos. E suas versões para os clássicos estão entre as gravações de rock mais selvagens e furiosas de todos os tempos!
Todos os primeiros compactos e álbuns dessas bandas são formados quase que exclusivamente por covers. Há apenas algumas poucas composições próprias perdidas no meio dos LPs e no lado B de alguns EPs. Foi assim que tantos artistas, hoje aclamados, foram forjando seu estilo próprio antes de se aventurar com composições próprias. O auge do r&b inglês se deu entre 1964 e 1966, até ser engolido pela vaga psicodélica.
De volta ao The Strypes
Como censurar uma banda por tocar cover se os integrantes tem apenas 14-16 anos? Na verdade, os Strypes souberam se inserir em um contexto que deu significado a isso!
Desde a virada do milênio, as bandas de rock contemporâneas foram surgindo mostrando profundo conhecimento sobre determinados movimentos musicais ou sonoridades marcantes da história do rock. Os garotos do The Strypes dão continuidade a tradição do r&b inglês atendendo a todos os requisitos estéticos e musicais fundamentais do estilo. E fazem o seu barulho com imensa maestria instrumental para a pouca idade que possuem. Mais que isso, resgataram uma das vertentes mais convulsivas e furiosas do rock.
Da para apostar umas fichas nas composições próprias vindouras. Enquanto isso, eles vão quebrando tudo com standards classudos em versões matadoras. Como diz a canção d’O Terno (melhor banda nacional que apareceu em muito tempo) quem é antenado baixa o novo embalo quente que é de 66!
Uma nota de rodapé
Não galera, The Strypes não tem nada a ver com White Stripes ou qualquer outra gracinha tecnobrega-indie por aí. Comparar eles com os Beatles é realmente ter horizontes muito estreitos no mundo do rock (ou ser meio surdo). Conhecer a discografia dos Stones e dos Yardbirds é catequismo. Basicão! Junta todos os alternativos e indiotas dos últimos 10 anos que, ainda assim, eles não tem a categoria de um Roger The Engineer ou mesmo um December’s Children (And Everybody’s).
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