Incêndios - Denis Villeneuve

Édipo Rei, tragédia grega escrita por Sófocles em 427 a.C, continua atual. É um cânone da literatura mundial com uma tensão psicológica que já sobrou até para Freud explicar.

Quem assiste ao filme Incêndios, lançado em 2011 e dirigido por Denis Villeneuve, percebe que a tragédia dos palcos gregos invade a tela de forma intrigante, através de uma narrativa não linear e fragmentada bem diferente da peça, ainda que se mantenha fiel à essência da ideia de Sófocles. É a peça escrita por Wajdi Mouawad, um libanês radicado na Canadá (assim como Nawal Marwan, sua personagem principal), e lançada em 2005 que dá origem ao filme.

Apesar dos spoilers acidentais nos parágrafos acima, esse não é um filme fácil de resumir, mas vale a tentativa. Irmãos gêmeos preparam-se para ouvir o testamento deixado pela mãe, mas são surpreendidos com as exigências que ela deixou, como ser enterrada com a face voltada à terra, apenas enrolada em um lençol branco, sem caixão nem lápide.

Como se não bastasse a exigência sombria, os dois terão que entregar dois envelopes para o pai e para um irmão, e só depois disso poderão enterrar o corpo da mãe, Nawal Marwan.

Para quem acredita que essa caça ao tesouro tem um quê de aventura simples, ledo engano: os irmãos estão, sim, em uma jornada em busca de verdade e do direito de enfim, poder enterrar a mãe e viver o luto com dignidade, mas somente quando perdem a mãe é que percebem que a mulher distante era uma completa estranha para os filhos, já que eles cresceram acreditando que o pai estava morto e desconheciam totalmente a existência de outro irmão.

Nawal, a mãe dos gêmeos Jeanne e Simon, viveu em Montreal e nunca falou de seu passado no Oriente Médio. Tudo isso vem à tona após a sua morte porque Jeanne, como uma Antígona moderna, aceita carregar seu luto em uma jornada pela antiga aldeia de sua mãe e por onde mais o destino lhe pedir.

Esse é um dos pontos altos de Incêndios, já que a saga dos irmãos não se passa apenas em Montreal ou no Oriente Médio do presente. A filha de Nawal é uma pesquisadora acostumada a resolver problemas complexos, mas nunca lidou com uma questão como essa, na qual seus conhecimentos lógicos não têm valor algum.

Nesses momentos, o espectador já está imerso no filme que mistura as cenas da busca dos irmãos pelo passado da mãe e a resolução de seus últimos pedidos com cenas que mostram o passado de Nawal, fragmentos estes que justificam pouco a pouco cada escolha da personagem, como em um quebra-cabeças. A morte de Nawal não é o fim da história, como você já deve ter percebido.

Incêndios - Denis Villeneuve

O drama de Nawal e toda intertextualidade possível

Ainda jovem e após perder seu companheiro, que foi morto para lavar a honra da família Marwan, Nawal dá a um luz a um menino, o segura em seus braços, vê sua mãe tatuar o calcanhar do bebê com três pontos e então, nunca mais vê o filho.

O menino, assim como Édipo, é separado de sua origem carregando nos pés a marca que sempre o identificará e deveria servir para que mãe e filho pudessem se reconhecer. Exposta a todo tipo de violência, Nawal sobrevive, mas sua alma parece esmaecer ao vento como fuligem, como em um incêndio que começa intenso e é capaz de causar inúmeros danos antes de se apagar aos poucos.

Pouco a pouco os olhos da mulher corajosa são tomados pela expressão vazia que servem de disfarce para a resiliência, ainda que guardada em segredo e durante toda a vida (literalmente).

As reconstituições da memória de Nawal contam com uma misé-en-scène delicada e preocupada em gerar significação ainda que não resultem em cenas esteticamente capazes de tirar o fôlego, mas que fazem o expectador provar inúmeras sensações devido ao teor das imagens.

As cenas trazem o peso da guerra, da violação, da humilhação e são tão fortes, tão marcantes que podemos admitir: prendemos a respiração por alguns segundos quando um dos personagens nos encara pela tela.

filme incêndios

Apesar dos primeiros momentos de oposição à irmã, Simon se rende à jornada e suas cenas também desempenham significados para o expectador, já que a tensão entre os dois é perceptível, especialmente nas cenas que remetem a incesto ou a busca pelo irmão e pelo pai.

Aliás, esse é um dos conflitos que lhe adianto, caro leitor, lhe causará estranheza e repulsa, mas essas passagens que serão, literalmente, fluidas como a água, lhe farão entender Incêndios, a vida de Nawal e seu jeito distante, além da peça de Sófocles. A água é um dos elementos mais dinâmicos da mise-en-scène deste filme, já que está presente em cenas que são peças chaves para a compreensão dos dramas familiares.

Incêndios - Denis Villeneuve

Outra questão que chama a atenção dos mais atentos é a referência literária nada óbvia que novamente se volta a Sófocles: o pedido de Nawal sobre a forma como gostaria de ser enterrada é uma referência a Jocasta, que guarda uma semelhança com Nawal sendo que a primeira resolve furar seus olhos para não ver mais nada e a outra decide que seu rosto deve estar em direção à terra.

Renderia incontáveis análises, mas a reconstrução da figura feminina neste filme é uma marca forte demais para não ser mencionada ainda que de forma resumida: no começo do filme, a personagem principal é retratada como mãe e secretária de um notário, mas na verdade esse é o fim da linha para Nawal, que guarda seu passado a sete chaves e esconde que já foi uma mulher à frente de seu tempo em sua juventude, mesmo quando reprimida.

A Nawal jovem tem a força proporcional à apatia que a Nawal madura apresenta. A Nawal mãe dos gêmeos não é mais aquela que lutou por liberdade, aguentou traumas, foi torturada e desempenhou papel político antes e durante a prisão no Oriente Médio.

Talvez a escolha por uma narrativa fragmentada tenha sido apenas uma forma a mais de caracterizar a personalidade ambivalente da mulher que canta e que lutou pela liberdade do Líbano, embora essa identificação não seja tão clara durante o filme.

A vida é perversa e não deu tréguas à complexa Nawal, mas acredite: Denis Villeneuve e Wajdi Mouawad são geniais e Incêndios vai explodir a sua cabeça. Ou não, afinal, se você leu até aqui já levou muito spoiler. Ao fim, Nawal é só uma mulher que não quer mais esconder a sua vida, mesmo que ela já tenha acabado.