Dentre as dezenas de passagens quase bíblicas que o Led Zeppelin deixou para a posteridade, uma em especial sempre me iluminou. No tema Folk, ”Going To California”, Robert Plant profetiza: someone told me there’s a girl out there with love in her eyes and flowers in her hair. Hoje em dia já é de conhecimento global que essa mulher com a flor no cabelo é Joni Mitchell, uma das maiores influências de Page e seu comparsa para os insights folkeados do dirigível Zeppeliano.
Só que depois de tantos anos, eis que surge a pergunta: Se ”Going To California” tivesse sido composta nos anos 2000, quem seria a inspiração para as ideias à base de marola hippie de Robert? Depois de ver o que a Joss Stone fez sob o palco do Citibank Hall em São Paulo, nesta noite de quarta-feira, não tenho nem dúvida de que todo o Led Zeppelin cairia de amores pela britânica, que mesmo não usando flores em suas madeixas louras, fez mais do que isso: Jogou uma leva de girassóis para a plateia. Creio que não só Plant ficaria orgulhoso, mas também o reverendo Van Gogh se sentiria tocado pela música desta belíssima cantora.
Desde de 2008 que o sopro de boa música chamado Joss Stone faz uma brisa em nossa país. Todo ano o povo brasileiro tem duas certezas: A primeira é que os impostos aumentarão, já a segunda é que Joss tocará aqui outra vez. Só que diferentemente das outras tours, onde a britânica estava divulgando discos atuais, o ano de 2015 marca os shows da musa em nosso país por seu caráter de experimentação, já que grande parte do conteúdo cantado nesta noite é oriundo de seu próximo disco, ”Water For Your Soul”, trabalho que verá a luz do dia no segundo semestre deste ano.
Só que antes de nosso povo receber esses novos temas com grande excitação, e claro, provar de sua grande qualidade e mudança no som habitual, tivemos o número de abertura, e mais uma vez fui surpreendido com um belo pocket de aquecimento. Com o show principal previsto para às 21:30, grande parte do público não esperava nenhum ato de abertura, mas às 20:00 a Cubana Lena Burke subiu ao palco e nos mostrou toda a força de sua cozinha cubana, swingada e em formato de power trio.
Durante exatos 60 minutos (a também loira) mostrou toda a força do caldeirão de ritmos caribenhos e espantou os presentes pela qualidade de sua voz. Cantando em espanhol e interagindo bastante com a platéia, Burke apresentou sua cozinha mais clássica e melancólica e soube intercalar algumas lindas baladas com momentos de mais balanço. Sua banda em especial chamou bastante minha atenção, o baixista fazia um groove bastante profundo e o som de seu instrumento beirava um fretless, mas não era o caso, isso sem mencionar a batera que além de muito coesa batucava uma percussão de excelente qualidade.
Depois de praticar o espanhol com um vozeirão digno da atração posterior, Lena saiu do palco bastante aplaudida e deixou a pista livre. Logo depois, fazendo valer sua pontualidade britânica, Joss entrou no palco… E daí pra frente foram cerca de 2 horas e meia de muito som. Primeiro a senhorita pontuou que seria uma noite diferenciada e que ouviríamos grande parte de seu novo material, depois a jukebox rolou solta e transformou o Citibank Hall em teatro para peças da Motown, com reposição de slaps e Wah-Wah com delay Jamaicano.
Fiquei bastante impressionado com as luzes e com a banda. Primeiro que contrariando grande parte dos grandes músicos que passam pelo Brasil, a cantora não possui uma banda ”step”, quem acompanha sua carreira conhece seus músicos de apoio e sabe da qualidade absurda de todos os envolvidos, e uma vez mais isso deu o tom para a noite. Contando com bateria, baixo, guitarra, duas backing vocals, uma dupla de trompete-saxofone (relembrando os Brecker Brothers), dois andares de tecladadeira e um belo órgão gospel, Joss nos mostrou grande parte de seu novo disco e me surpreendeu (positivamente), pelo pesadísimo flerte rasta Reggae Roots.
Rolou medley de Bob Marley com ”Bad Boys”, jam com Parliament e a mítica ”Mothership Connection”, e Jay Hawkins com o mítico blues de negras notas, ”I Put A Spell On You”, tema que quase me colocou de joelhos. O show foi fantástico, melhor ainda justamente pelo fato de apresentar novos temas e impressionante pelo nível de exatidão que a banda da senhorita estava se apresentando, era visível que tratava-se de uma noite importante, e de fato foi assim.
São momentos como o de hoje que me fazem escrever de música. Quando tenho a oportunidade de ver um show onde o sentimento é a base, tal qual nesta noite, sei que sou um privilegiado por poder ouvir as notas ao vivo, onde o som realmente acontece. Momento onde seu néctar é absolutamente puro e se mistura com a energia do ambiente, segundos que nos fazem bater o pé no balanço do som, sentir o dub ou simplesmente se derreter com uma voz que parece até de mentira.
É impressionante ver como uma mulher magrinha tal qual a Joss, consegue emanar um híbrido de Barbie com Etta James quando abre a boca, é realmente assustador. Mas por outro lado chega a ser até engraçado notar como essa menina é simpática, bem humorada e bastante tranquila, absolutamente leve, tal qual sua sublime arte.
Seu maior talento não é a voz ou a criatividade na hora de escrever. O grande lance com essa estonteante mulher é o que ela carrega. São as influências do soul clássico, o climão de Big Band advindo dos tempos áureos do jazz e o swing do funk, que convenhamos, não se aprende na escola. E o mais absurdo é ver como todas essas influências se fundem, confundem e viram jam quando ela começa a guiar o som com seu canto de Hamelin.
É realmente sensacional sentir que o músico que você foi ver está tão feliz quanto você, bate palma sabe-se lá deus por que, atende pedidos de músicas surgidos da plateia e ainda mostra esse nível de paixão pela música. É óbvio que teve uns trechos à capella de ”Teardrops” e da radiofônica ”You Had Me” e outros exemplos de excelente música pop. Mas o que fica é a experimentação com o próximo disco e seus elementos de música árabe, indiana, africana e esse caráter abstrato que todos os shows possuem e que não podem ser definidos em palavras.
O dia em que alguém puder decifrar isso, creio que o mundo não terá mais graça. Meu maior sonho é que essa resenha consiga resgatar algo do show e fazê-lo pensar: Que grande noite. Esse pequeno aperitivo da ”Total World Tour” é exatamente o que essas linhas visam obter, ensinamentos, influências e qualquer tipo de ligação com novas pessoas, culturas e a arte de forma geral, materiais que servem de combustível para essa fantástica intérprete.
A musa futurista do Led Zeppelin, a voz que nos faz fechar os olhos e mergulhar fundo atrás do estopim da música, aquele olho do furacão enebriante que nos faz esquecer de tudo e apenas optar pelo mais fácil: sentir o momento.
Obrigado, senhorita Stone, todos os mais de 7.000 presentes lotaram as dependências da casa e saíram da mesma completamente satisfeitos, você nos fez sentir e nosso papel é continuar tentando chegar até o cerne do som e de nossa paixão pelo o que você sente, explica, nos passa e nem o resenhista explica. Simplesmente lindo.