Muitas pessoas gostariam de fugir da realidade. Muitos de nós, seres humanos, almejamos um revólver de escape para pregar o sumiço deste verdadeiro empório de exagero que impera nossos batimentos em todos os campos da vida nessa sociedade pós moderna.
Não é por medo, é por falta de opção. Muitos afirmam que quem busca algo que vai além destes valores que são impostos está apenas arrumando uma desculpa, está mascarando sua falta de capacidade de vencer, está assinando seu óbito de fraqueza. Mas isso não ocorre por medo, e sim por falta de espaço, sabendo que eu e você habitamos um todo com 7 bilhões de vidas e que muitas delas pisam umas nas outras só para ter uma falsa sensação de ascensão, uma espécie de endorfina social, que para ser concretizada precisa esmagar crânios, ideias e mentes.
Este que vos resenha realmente não recrimina quem foge, até por que também possuo ideias libertários neste sentido, só que como já disse na resenha do disco, quem convocou seu respectivo Buda viu que (se) a selva de pedra está em chamas é só chamar o Criolo que ele apaga, só que isso foi em estúdio, ao vivo o bombeiro da Babilônia chega armado de axé e ímãs de geladeira com Sartre e Nietzsche.
Quem esteve presente no Studio Verona viu algo que vai muito, mas muito além de uma performance de um músico que se encontra em seu apogeu artístico. Costumo dizer que quem vai para um show do Criolo assina o cartão de embarque para uma pregação, até porque acredito que ele não canta, ele vai além, ele prega, e ah se todo testemunho de Jeová fosse assim.
A missa no terreiro do rap começou bem perto da meia noite e só acabou quando estávamos nos aproximando das três horas da manhã. Cheguei em casa as quatro e minha mãe me perguntou: Filho, que cheiro é esse? Minha réplica foi simples: “Realidade mãe, fui ver o Criolo mais uma vez, desta vez sozinho, sem a presença do Milton Nascimento quando fui junto com você”.
Quem vai de mente aberta presenciar um show deste grande exemplar de filho de cearense não vai só uma vez, vai duas, três, quatro… A energia doce que alicia nossas crianças é absurda, ele dá valor para cada um que vai para seus shows, só que o discurso não é piegas igual os gringos fazem só no I Love This Crowd, aqui não violão, aqui a parada surge da combustão de energia interna.
Ele agradece e dá um valor realmente alto para a molecada que está fazendo o corre e que investe para ter esse momento fora da realidade, ele te leva para a Babilônia com banda e tudo, com direito a carona na escada do corpo de bombeiros e ainda deixa você tocar a sirene. A música, a poesia desse cidadão, é para ser cantada com a mão no peito em pura sinergia utópica pé de breque, afinal de contas ele valoriza o encontro, e quem vai, retribui cantando seus hinos.
E é por amor a esta pátria que nós nos direcionamos ao local mais próximo para ver o que o Messias possui para nós, como diria o grande saxofonista Pharoah Sanders: The Creator Has A Master Plan, e que esteve presente nos shows no Sesc, no Rio de Janeiro, Minas Gerais, tanto faz o pico, ou tanto fez… Quem foi queria saber qual seria sua missão.
E o que move este coletivo são as frases entre as faixas, o momento liberto da poesia do calor do momento (seja aplaudindo a hipocrisia corrupta do nosso país) ou agradecendo a presença de seus pais, afinal de contas rap também é família, e toda missa da santa Criolescência é sempre mais um exemplo de evento familiar, ele se sente protegido porque comunga suas letras, e quem canta exala pertencimento.
Seu novo disco foi tocado praticamente na íntegra, tiramos o nó da orelha e ainda revisitamos o submundo particular do seu debutante, o também muito competente “Ainda Há Tempo”, lançado em 2006. Mais do que um show de lançamento colocando em voga seu disco mais recente, todo e qualquer evento com o Criolo no meio vai além de um show, é uma celebração, ele transcende o rap, ele faz música de uma forma livre e traça distâncias tal qual Macunaíma, vai de um estado ao outro com dois passos, é capaz de citar Sabota e vinho francês na mesma frase.
Passar pelo Grajaú e ainda fechar rolê com Neto, representante do Síntese, fora os costumeiros comparsas, Dj Dandan, Daniel Ganjaman e as surpresas que um show desta patamar de energia positiva sempre emanam quando o beat é solto.
A qualidade instrumental é de cair o queixo, tem banda de jazz funk que não tem um groove desse nível, e foi realmente fantástico ver que TUDO que se escuta no disco é completamente tocado pela banda de apoio do mestre de cerimônias. O guitarrista Guilherme Held acabou com o show, ele e sua Gibson ES-335 (de 1964) criaram cada textura e repetiram certos solos do disco e outros trechos que inclusive me espantaram por serem de fato possíveis de serem extraídos de uma guitarra (!) E o time de metais que fechou com o quatro cordas do Marcelo Cabral também não é brinquedo não!
E digo mais, em matéria de show de luzes, qualidade de som e nível de fumaça, creio que não existam muitos eventos comparáveis com esse aqui. Hoje em dia ver um gig desses caras é um dos melhores eventos que o senhor pode assistir em solo canário. Impressiona pelo ecletismo (teve até Bob Marley depois que o Neto arrepiou a nave celestial com “Plano De Voo” e fez a boa com “Não Mais Problemas”, o clamor de “No More Trouble“), fora a reencarnação de um Criolo Doido quando subiu o sangue e o volume da clássica “Demorô”.
Teve até chapeleta à la Raiden, do Mortal Kombat, relembrando o show no Lollapalooza, fatality a torto, a direito, canhoto e ambidestro, isso sem se esquecer de um cavaco que fechou a roda com “Fermento Pra Massa” e dificultou a ação dentro da missão do tradicional passeio da lagartixa. Só que não foi só isso, quem pensou que a sessão coquetel molotov estava no fim se enganou, afinal de contas o Criolo ainda ligou para o Lázaro Ramos e finalizou a baga do maior bioma do rap nacional chamando os maiores representantes do gênero, Rael e Black Alien, o Babylon By Gus, pra um medley absurdo comprovando a força do nosso rap com “Pra Que Cerol” e “Tô Pra Vê”.
É bom sair de um show e se lembrar de sua origem, poucas vezes tive esse sentimento à la Policarpo Quaresma de puro e doentio nacionalismo, mas depois do show cheguei em casa com orgulho de ser made in Brazil, mesmo morando em um país cheio de status quo com sucrilhos no prato… Ainda bem que tem muito maloca com saber empírico pra salvar. Grande show, grande Criolo, vimos até os protagonistas do curta “Duas De Cinco + Cóccix-ência”.
Veja o set de fotos completo aqui: flickr.com/photos/fernandoyokota.