Traumas fazem parte da vida, mas na maioria das vezes o impacto é tão grande que certas coisas podem nunca mais acontecer. Alguns acontecimentos são capazes de mudar o rumo de uma vida, e se tratando de traumas o quesito problemático não costuma interferir de maneira positiva, muito pelo contrário,

E se você acha que resignações são coisas exclusivas da vida dita normal, fique sabendo o senhor que a música também está cheia de traumas, mas muitos foram tratados, resolvidos, ou até mesmo foram o estopim para alguns dos melhores registros que já tivemos notícia, ”Diana & Marvin”, o fruto de duetos de Diana Ross e Marvin Gaye que o diga.

Diana & Marvin - Capa

A colaboração quase não saiu do papel, mas valeu o sofrimento, o Soul é belíssimo, Diana estava voando, e Marvin superou o empecilho Tammi Terrell em prol de de uma das maiores gravações da história do estilo. Mais um trabalho para entrar na lista ”fase de ouro Motown”, uma aula vocal lançada em 1973.

Pra quem não é muito familiarizado com a discografia do reverendo Marvin, o nome Tammi Terrell pode não significar nada, mas não é bem assim que a banda toca. Juntos, a dupla registrou três trabalhos magníficos, e esse número tinha tudo para duplicar ou até mesmo triplicar, tamanha a regularidade com que gravavam. Primeiro tivemos ”United” lançado em 1967, ”You Are All I Need” e ”Easy”, lançados em 1968 e 1969, respectivamente, discos que hoje são pouco citados, mas que tiveram importância ímpar dentro da música do Sr. Gaye.

marvin gaye tammi terrell

Se você não conhece esses trabalhos recomendo que os escute, a química que Marvin tinha com Tammi era uma daquelas coisas inexplicáveis, a paixão, o sentimento, a maneira como os timbres casavam… É de arrepiar, e eu inclusive acho superior ao nível musical desse trabalho com Diana, por exemplo, que por si só já é ótimo.

Tammi tinha tudo para ser uma das maiores vozes da música, e mesmo tendo deixado cinco trabalhos registrados (3 com Marvin, um solo, e outro com Chuck Jackson), ainda assim foi pouco. Ela estava despontando para o grande público quando foi diagnosticada com câncer no cérebro, e se hoje em dia o tratamento já é complicado, em 1970 então nem se fala.

A vocalista se viu cega, confinada em uma cadeira de rodas até seus últimos dias, e sua morte teve um grande impacto na vida e na carreira de Marvin. Alguns até afirmam que o músico entrou em depressão e começou seu flerte vicioso com a cocaína depois do ocorrido, fora que ele mesmo dizia abertamente que Tammi era sua parceira musical perfeita. Era fácil prever que não seria fácil fazê-lo participar de um novo dueto, foram três anos de negociações…

A ideia inicial era lançar o trabalho em 1970, mas isso já deixa claro a falta de sensibilidade da Motown, pois meses antes, com a morte de Terrell, o músico estava atordoado com o acontecimento, e ainda se envolveu nos conflitos da família da vocalista com a gravadora, que além de não ajudar em seu tratamento, ainda pressionou Marvin a divulgar ”Easy”, seu último disco com a Americana. Fora que esse trabalho teve segundas intenções, a Motown precisava de uma fagulha para que Diana explodisse.

diana ross e marvin gaye

Diana_Ross-Marvin_Gaye-Diana-Marvin

Foi um disco pensado com claras segundas intenções fonográficas, mas o resultado de maneira nenhuma reflete isso, a maneira como eles cantam faz o ouvinte se lembrar do sentimento orgânico, da beleza de juntar e ouvir um som tão belo e bem tocado como esse, repleto de detalhes e envolto por vozes sublimes, as melhores que existiam na época.

E o resultado são 35 minutos de uma música maravilhosa, que inclusive rendeu disco de ouro, cumprindo com os objetivos que a gravadora tinha em vista, lançando Diana para um patamar diferenciado de artistas, ajudando Marvin (mesmo que indiretamente), a superar esse problema colaborativo, dando mais destaque para o vocalista e contribuindo para o mundo da música com um disco para de fato ser lembrado durante muitos e muitos anos.

Com grandes hits como ”You Are Everything”, vários momentos de puro sentimento ao som de ”Don’t Knock My Love” e um instrumental brilhante em todo o disco, endossando o Funk/Soul sempre com o trabalho brilhante dos Funk Brothers, ”Stop, Look, Listen (To Your Heart)” sintetiza a rara beleza deste registro.