O cineasta Glauber Rocha já não está mais entre nós, terrestres, há mais de 30 anos, mas suas palavras ainda soam ideais revolucionários e à frente do tempo.
Confira entrevista de Glauber Rocha concedida a Michel Ciment, com tradução de Sérvulo Siqueira, para a revista Positif na década de 70 e posteriormente publicada no livro Revolução do Cinema Novo.
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Barravento (primeiro longa-metragem de Glauber) não é conhecido na França, mas sabemos por aqueles que o viram que é um filme sobre os pescadores na Bahia no qual você já relacionava um, certo misticismo, a dança, a música e o mar.
(Glauber) – Barravento (1962), não é um filme meu, eu o fiz quase por acaso. Ele foi iniciado por um outro diretor, Luís Paulino dos Santos; depois de um acidente de filmagem, eu tive que continuá-la: filmei bem depressa com um orçamento de 3.000 dólares e 6.000 m de película. Em seguida, quando vi o material, não gostei e o deixei de lado. Oito meses mais tarde, Nelson Pereira dos Santos viu os copiões e achou interessante. Então recomeçamos a construir o filme.
Você havia feito antes alguns curtas-metragens?
(Glauber) – Sim, na época em que fazia critica cotidiana, e cineclubismo. Fazia também teatro, mas só encenava poemas. Eu tinha uma concepção vanguardista e fiz os curtas-metragens nesse espírito: foram o Pátio (1960) e Cruz na Praça (1961) filme que eu não terminei, pois quando vi o material montado, compreendi que essas ideias não funcionavam mais, que a minha concepção estética tinha sido transtornada.
Mencionaram um outro curta-metragem seu.
(Glauber) – Não é meu, é um curta-metragem que produzi, chama-se Rampa, e que foi dirigido por. Paulino dos Santos, autor inicial de Barravento. No entanto, entre Deus e o Diabo e Terra em Transe, fiz dois documentários, um em cores sobre o Amazonas (em dezembro de 1965) e outro com som direto sobre as eleições políticas no Maranhão, que é também uma região do Amazonas (em fevereiro de 66). O filme sobre o Amazonas é meu primeiro ensaio em cores. Cheguei no Amazonas com uma ideia preconcebida e descobri que não existia a Amazônia lendária e mágica, a Amazônia dos crocodilos, dos tigres, dos índios etc… O outro filme é uma reportagem sobre as eleições de um governador do Maranhão, José Sarney, e muito importante para mim porque foi filmado com som direto e foi uma experiência vivida para Terra em Transe, pois eu participei das etapas de uma campanha eleitoral, podemos ver trechos desse material em Terra em Transe: um carro preto que entra no meio da multidão no momento da eleição de Vieira, um comício de jovens…
O que você entende por encenação de poemas?
(Glauber) – Eu havia organizado um grupo de teatro com amigos brasileiros, um poeta, Fernando da Rocha Peres e um cenarista, Calazans Neto, e também Paulo Gil Soares que há muito tempofaz comigo jornalismo, teatro, cinema (foi assistente de Deus e o Diabo e Terra em Transe). No começo, nós queríamos encenar tragédias gregas, mas achamos difícil e também pouco adequado às circunstâncias. Então encenamos poemas. Era época em que o Brasil vivia uma loucura poética. Fizemos espetáculos dialogando e dramatizando poemas. Mas as representações foram suspensas pela censura.
Quando foi isso ?
(Glauber) – Foi em 57, antes da filmagem de Pátio, mas era no mesmo espírito desse filme, quer dizer, um espírito de vanguarda, muito anticlerical e a interdição nos apanhou por motivos religiosos e morais, não políticos.
E Pátio aproxima-se disso?
(Glauber) – Sim e Cruz também. Depois de conhecer Nelson Pereira dos Santos, encarei a possibilidade de fazer um filme no Brasil. Entre Pátio e Cruz, fui estagiário de Nelson no Rio. Vim da Bahia para o Rio quando ele filmava Rio Zona Norte. Durante a montagem de Barravento ele me influenciou e me formou tecnicamente. Se alguém teve influência na minha vida cinematográfica e intelectual, este foi Nelson. Mesmo se não tenho afinidades de estilo com ele, teve um papel decisivo na minha vida.
Aliás, Nelson teve importância em todo o movimento do Cinema Novo, certamente, mas é preciso dizer também que essa importância não deve ser vista como uma ação direta de Nelson. Trata- se mais de uma influência subterrânea; ele é a consciência do nosso grupo. Foi ele quem fez o primeiro filme independente do ponto de vista da produção, Rio 40 Graus(1955), e aí encontramos as primeiras posições políticas frente à situação colonial do Brasil. Ele tornou-se um líder, uma espécie de inspirador e, ainda hoje, mediador entre os contrários. Sempre que surge uma crise no meio do Cinema Novo ele exerce papel humano e muito eficaz.
Depois da experiência de Barravento, sobre que bases você começou Deus e o Diabo?
(Glauber) – Eu filmei Barravento num estado de crise, abandonava as ideias da adolescência. . . Diferentes dos intelectuais franceses, nós temos uma formação cultural muito confusa: lê-se primeiro os dadaístas, depois a tragédia grega.Conhecemos o romance americano de Faulkner e em seguida descobrimos Rimbaud e Mallarmé As universidades não funcionam mesmo, os livros chegam numa grande desordem. A formação de um jovem brasileiro é incoerente, se ele não tiver a chance de vir à Europa estudar. Nessa época, eu era surrealista, futurista, dadaísta e marxista ao mesmo tempo. No Brasil, por exemplo, todas as teorias de Eisenstein chegaram em tradução espanhola e depois portuguesa e, como os cineclubes e as cinematecas são bem organizados, a obra de Eisenstein era muito conhecida lá. Nós éramos eisensteinianos e não admitíamos que se pudesse fazer um filme a não ser com montagem curta, primeiros planos, etc… Rio 40 Graus foi influenciado pelo neo-realismo. Gostamos muito do filme de Nelson porque era de fato o primeiro filme brasileiro, mas fazíamos ressalvas porque não era um filme eisensteiniano. No começo do Cinema Novo, lembro-me muito bem que minha amizade por Hirzmann se devia ao fato de que ele gostava de Eisenstein. Ele era engenheiro, tinha as teorias de Eisenstein na ponta da língua, ele fazia experiências. Seu primeiro filme, Pedreira de São Diogo, um curta-metragem, era a aplicação das idéias de Eisenstein. E lembro-me que, quando Sarraceni juntou-se ao grupo, como ele gostava do cinema italiano, Rosselini, Visconti, Fellini, nós dizíamos: – esse aí não entende Eisenstein. Pátio é um filme feito de metamorfoses, de símbolos, de montagem dialética. Barravento foi feito num outro espírito, mais direto, mais verdadeiro, cheguei a registrar a música negra ao vivo. É um filme mais perto da realidade porque já tínhamos visto nessa época Roma, Cidade Aberta e Paisá e a descoberta de Rosselini através desses dois filmes era uma espécie de antieisensteinismo. Em Barravento, sente-se então essa influência, mas existem resíduos eisensteinianos, e primeiros planos no estilo de Que Viva México!
Quando começou Deus e o Diabo, você tinha a experiência de um filme atrás de você…
(Glauber) – É a primeira vez que me fazem essa pergunta e é a primeira vez que eu falo de Barravento assim. Em Deus e o Diabo desenvolvem-se algumas coisas que estão em Barravento. Não se pode negar que a sombra de Eisenstein está presente nesse filme, sobretudo na primeira parte. Eu gosto muito de Eisenstein, mas eu vivo numa realidade que não é uma epopeia no estilo de Nevski, nem um drama histórico estilo Ivan.
Mas o oposição de estilos corresponde à escolha do beato e dos cangaceiros.
(Glauber) – Na parte consagrada ao cangaço eu podia descambar para um estilo western, como é o caso do Cangaceiro, o célebre filme, e eu acho que atingi uma maneira pessoal, que não saberia definir. Eu me sentia melhor ao filmar a segunda parte, mais livre para fazer um plano, um travelling, para cortar na montagem, para dirigir os atores. A primeira parte, a do beato, que foi filmada antes, me foi penosa.
Você disse que Deus e o Diabo estava no estilo da literatura de cordel em que sentido?
(Glauber) – Como os poemas da Idade Média ou os westerns, há uma grande tradição de versos populares e de canções que vêm de herança portuguesa e espanhola, é a dos cantadores, que agora tornou-se no Nordeste especialidade dos cegos, que inventam histórias. Por serem cegos, eles têm uma imaginação maior e inventam lendas. Todo o episódio de Corisco em Deus e o Diabo foi tirado de 4 ou 5 romances populares, e a seqüência da morte de Corisco segue a decoupagem de uma canção. Quando conversei com alguns cegos e também com o homem que matou Corisco, eles me contaram mais ou menos a mesma história, mas cada um misturando à verdade detalhes inventados. O major Rufino que vemos em Memórias do Cangaço e que me inspirou o personagem de Antônio das Mortes, contou-me três vezes de maneira diferente como ele matou Corisco. E no filme de Paulo Gil, ele conta de uma quarta maneira. O que se sabe ao certo é que ele feriu no pé a mulher de Corisco e eu mostro isso no meu filme. A expressão portuguesa é muito popular no Nordeste, os cegos, nos teatros populares, nos circos, nas feiras dizem: eu vou lhes contar uma história que é de verdade e de imaginação, ou então: é imaginação verdadeira. A idéia do filme veio espontaneamente, com uma certa evidência. Toda minha formação foi feita nesse clima. Não houve nada de intelectual na minha posição.
O filme apareceu para você como uma visão ?
(Glauber) – Sim, foi exatamente isso.
Em Vidas Secas e no seu filme há o mesmo contexto geográfico e a história de um casal de camponeses, mas você não escolheu o caminho realista.
(Glauber) – Eu não tenho a intenção de dizer se eu faço um cinema de poesia ou um cinema de prosa, porque são categorias que convêm à literatura, não ao cinema. Nelson partiu de um romance realista de Graciliano Ramos, um romance que é documento. Eu parti de um texto poético. A origem de Deus e o Diabo é uma linguagem metafórica, a literatura de cordel. Eu gostava mais desse gênero, gosto também de Vidas Secas que não tem muita afinidade comigo. Nelson tem gosto pela objetividade e a eficácia e por isso escolheu Graciliano e lhe foi fiel. Ele foi criticado por não haver inventado o seu tema, mas ele disse que escolheu Graciliano porque gostava e o difícil era justamente ser-lhe fiel.
Os discursos de Sebastião e Corisco são inteiramente seus?
(Glauber) – Sim, mas é uma sintaxe popular. Nós temos três tipos de tradição literária uma tradição européia, que vem a ser Stendhal, Flaubert etc… Graciliano é uma pessoa que escreveu em português como os realistas franceses. Depois temos uma tradição barroca que veio dos espanhóis como Cervantes e Quevedo e dos portugueses; e enfim a literatura popular que nasceu do povo. Uma pessoa nascida em São Paulo e que fez uma universidade tem formação cultural mais anglo-francesa; existem pessoas no Brasil que nunca leram D. Quixote e conhecem muito bem Joyce. Mas essas tradições todas constituem o Brasil. O Nordeste, assim como São Paulo, que é um outro tipo de Brasil, americanizado.
Os personagens femininos em Deus e o Diabo têm um papel mais importante do que geralmente se pensa.
(Glauber) – Essa observação me foi feita muitas vezes e nunca cheguei a um comentário realmente objetivo a respeito. Em Barravento, Deus e o Diabo, e também Terra em Transe, as mulheres têm consciência do que se passa, consciência da «história». EmBarravento, um personagem feminino dá a sua própria vida como exemplo, se sacrifica pelo povo, leva um homem a assumir uma posição política e morre. Eu tenho muita dificuldade em trabalhar com os personagens femininos. Escrevi diversos roteiros que não foram filmados, nos quais eu tinha dificuldades em criar personagens femininos, que são comigo sempre muito conscientes e têm influência moral ou política.
Mas não Sílvia em Terra em Transe?
(Glauber) – Não, Sílvia certamente não, mas ela está em segundo plano, é uma espécie de musa, uma expressão da adolescência, que se torna imagem fugitiva. Sílvia aliás não diz uma palavra em Terra em Transe, porque não consegui colocar uma só palavra em sua boca. Foram cortadas porque tudo o que ela dizia ficava ridículo. Sara talvez diga as coisas um pouco como homem. Talvez exista aqui um fenômeno de compensação porque não encontro freqüentemente na realidade brasileira mulheres tão conscientes.
Como você encontrou e escolheu seus atores? Dizem que há problemas quanto a isso na América Latina. Buñuel por exemplo teve dificuldades no México.
(Glauber) – No Brasil é diferente. Há uma grande atividade teatral. Encena-se Brecht. Muitos atores estiveram nos EUA e trabalharam no Actor’s Studio. Othon Bastos (Corisco em Deus e o Diabo) é ator brasileiro que melhor representa Brecht no teatro. Acho que ele deu uma certa dimensão ao seu personagem e quando eu discutia com ele, me revelava muitas coisas. Ele é culto e tem uma voz excepcional. Foi ele quem fez emDeus e o Diabo, a dublagem de Sebastião que é interpretado por um amador, um membro da aristocracia negra da Bahia que também trabalha em Barravento. Maurício do Vale, que é Antônio das Mortes, é ator de televisão. Ele havia feito o Zorro. Eu o escolhi porque ele era familiar ao público e Antônio das Mortes é um herói popular. Geraldo Del Rey, que faz Manuel, é ator muito conhecido no Brasil, um cartaz. Othon Bastos, Del Rey e Sônia dos Humildes (Dada) são atores do grupo teatral da Bahia, onde estudaram numa escola muito boa. Em Terra em Transe, são grandes atores de teatro, mas eu os escolhi em função do assunto. José Lewgoy, que faz o Vieira, é o ator de cinema mais popular do Brasil: ele faz sempre o chefe dos bandidos nos filmes de gangsters, e aparece também nas comédias. É espontâneo e inteligente. Paulo Autran é ator de teatro quase oficial, representa tragédias gregas, interpreta então um papel teatral, o personagem de um mistificador. Jardel Filho, que é o herói do filme, é também ator conhecido no Brasil. Já fez mais de quarenta filmes, trabalhou na Espanha e na Argentina.
Quando você encenou no teatro, já utilizava a música?
(Glauber) – Não, só palavras e iluminação.
Como você teve a idéia de dar importância tão grande ao comentário musical? À canção que exprime mesmo a mensagem final de Deus e o Diabo?
(Glauber) – Inicialmente é preciso dizer que a música tem papel importante não só no meu filme, mas nos outros filmes brasileiros também. Aliás nós somos um povo talvez subdesenvolvido do ponto de vista cultural, mas bastante desenvolvido em relação à música. Por exemplo, Rui Guerra é diretor, mas também músico, e bom músico; e todo mundo lá toca um instrumento; eu não, mas já fiz algumas canções. Somos todos músicos. Hirszman acaba de fazer um filme musical, a música tinha em seu filme tal força que se perguntou: por que não fazer um filme musical, e fez a Garota de Ipanema; os personagens são compositores e cantores. No Cinema Novo há uma tendência de se fazer filmes onde a música não seja somente um comentário, mas elemento tão importante quanto os diálogos e a fotografia. Eu estava inspirado por Villa Lobos quando fiz Deus e o Diabo. Há uma cena no filme que eu tive idéia de filmar porque eu havia ouvido a música – é cena dos beijos – entre Corisco e Rosa. Eu tinha medo de filmar essa cena que era indispensável. Ouvi um disco à noite, a Bachiana n° 9, discuti com o fotógrafo e os assistentes, e nós tivemos a idéia da cena, em seguida fiz a montagem a partir da música, em função do ritmo.
Eu devo dizer que a peça de teatro que mais gosto, entre as que vi no Brasil, é a Ópera dos Quatro Vinténs, uma peça que me tocou muito e aliás a todos no Brasil. Eu fui especialmente a Berlim ver o Berliner Ensemble. É preciso dizer que Brecht é muito representado no Brasil.
Qual o Brecht mais importante no Brasil? Por que no primeiro Brecht, o emprego da música é bem diferente do segundo Brecht?
(Glauber) – Antes de filmar Deus e o Diabo, eu só conhecia a Ópera dos Quatro Vinténs. A primeira peça de Brecht levada no Brasil foi A Boa Alma de Setchuan, mas eu não a vi. Eu vi a Ópera dos Quatro Vinténs no meio da filmagem de Barravento; um dia eu fui à Bahia para assistir ao espetáculo. E aquilo realmente me transtornou, foi uma descoberta tardia, mas importantíssima.
E a direção dos atores?
(Glauber) – No Deus e o Diabo, foi mais fácil. Havia um clima extra ordinário, uma equipe fantástica. O câmera Valdemar Lima gostava do filme e era um amigo, e depois havia Walter Lima Jr. e Paulo Gil que colaboraram comigo. Os atores gostavam do assunto, e como não tínhamos dinheiro, era uma espécie de aventura romântica. Havia um estado de espírito comum e um elã puro. Evidentemente havia problemas técnicos, mas eu me lembro que à noite nós trabalhávamos muito juntos, nós ensaiávamos com os atores, etc… Em Terra em Transe, já foi outra história, com atores profissionais, com contratos pagos, que tinham que trabalhar no teatro à noite, que filmavam até as quatro horas da tarde e alguns mesmos se recusavam a falar com os assistentes. Com os atores principais as relações eram profissionais. Eu sofria porque achava que poderia conseguir mais no filme, se os atores tivessem compreendido melhor seu papel. Queriam trabalhar neste filme porque pensavam que se tratava de filme importante, só isso. Aquele que interpreta Diaz, dizia que não estava de acordo com o seu papel, por ser um homem de esquerda e não querer interpretar o homem da direita. Aquele que interpretou Vieira pretendia ser sofisticado, e por isso não podia interpretar um herói populista. O personagem principal sentia-se bem e gostava do papel.
Em Deus e o Diabo, o personagem de Antônio das Mortes está a serviço da repressão e é, ao mesmo tempo, um agente da história, uma consciência crítica em relação aos personagens. Você não recorreu a este tipo de personagem em Terra em Transe, você abandonou esta construção de personagem-testemunha.
(Glauber) – Antônio das Mortes é, em Deus e o Diabo, o único personagem que eu realmente elaborei; os outros são personagens verdadeiros num contexto histórico determinado, e podem ser identificados. Com Antônio eu apresentava a descrição de uma consciênciaambígua, de uma consciência em transe. Antônio que é personagem primitivo, um camponês, um aventureiro, vamos encontrá-lo mais desenvolvido em todas as contradições do Paulo Martins de Terra em Transe. Paulo Martins, como Antônio, é um cara que vai à direita e à esquerda, que tem má consciência dos problemas políticos e sociais. Encontramos nele uma revolução recorrendo às contradições, e disso ele morre. É, aliás, uma parábola sobre a política dos partidos comunistas na América Latina. Para mim, Paulo Martins representa, no fundo, um comunista típico da América Latina. Pertence ao Partido sem pertencer. Tem uma amante que é do Partido. Coloca-se a serviço do Partido quando este o pressiona, mas gosta também muito da burguesia a serviço da qual ele está. No fundo ele despreza o povo. Ele acredita na massa como um fenômeno espontâneo, mas acontece que a massa é complexa. A Revolução não estoura quando ele o deseja e por isso ele assume posição quixotesca. No fim da tragédia, ele morre. Antônio é mais primitivo, recebe dinheiro do poder, deve matar os pobres, o beato e o cangaceiro, e ele sabe que essas pessoas não são más porque são vítimas de um certo contexto social do qual não têm consciência. Antônio é um bárbaro, enquanto Paulo é intelectual. Eu gostaria de retomar no Terra em Transe alguns elementos da estrutura de Deus e o Diabo. Encontramos nas cidades a mesma hierarquia do campo; é uma herança do tempo do latifúndio, de uma mentalidade da Idade Média com, certamente, influências da civilização moderna. EmTerra em Transe, a maior ambição que eu tinha era denunciar essas estruturas e paralelamente mostrar uma estrutura dramática em vias de se destruir. É por isso que Terra em Transe tem relação com Deus e o Diabo. Trata-se da destruição de um discurso que já foi iniciado em Deus e o Diabo.
Você então tentou também empreender essa destruição do ponto de vista estético?
(Glauber) – Deus e o Diabo é um filme narrativo, é um discurso… Terra em Transe já é mais antidramático, é um filme que se destrói, com uma montagem de repetições. No momento eu gostaria de mudar, pois acho que há uma saída política que é realmente atual e válida, e que responde a todas as insuficiências teóricas dos Partidos Comunistas tradicionais latino-americanos. Personagens como Paulo Martins ou Antônio das Mortes não me interessam mais. Eu acho, par exemplo, que Che Guevara é o verdadeiro personagem moderno, toma posição contra ela. É o verdadeiro herói épico, nem o intelectual como Paulo, nem o primitivo como Antônio.
Mas, aliás, a significação implícita de Terra em Transe é que a aliança do intelectual com a burguesia leva sempre ao fracasso.
(Glauber) – Acho que as respostas às dúvidas de um personagem, como Paulo – dúvidas que aliás caracterizam toda minha geração e eu mesmo, é a figura de Guevara. Não estou dizendo isso porque se fala neste momento em sua morte, pois eu já pensei muito nisso e tudo me leva neste momento a fazer um filme a respeito de um personagem como ele, burguês que se desliga de sua cultura e faz a revolução. Ele dá uma resposta por sua própria existência e agora com sua lenda, ele traz resposta a uma série de problemas da América Latina.
Antônio das Mortes está além de Paulo Martins. Ele é um pouco a racionalidade da história.
(Glauber) – Sendo Antônio das Mortes primitivo e não tendo vivido os compromissos e a educação burguesa de Paulo, ele pode se tornar mais rapidamente um personagem, revolucionário; mas também Paulo pode se tomar revolucionário. Não abandonei o personagem de Antônio, quero voltar a ele mais tarde. No Brasil, é o personagem do filme que adquiriu mais popularidade e a ele Deus e o Diabo deve seu semi-sucesso; ele se comunicou com os espectadores. Quero fazer uma espécie de anti-western, brigas entre proprietários de terra e camponeses, etc, e quero ambientar Antônio nesta situação.
No fim de Deus e o Diabo é dito que “o mar será sertão”, e o início de Terra em Transe é também o mar, o oceano: você pensou nisso?
(Glauber) – Sim, é muito claro; eu nem queria fazer uma referência simbólica — acho que Terra em Transe é o desenvolvimento natural de Deus e o Diabo: as pessoas chegam ao mar. Chega-se pelo mar à cidade e, no fim, acabamos num deserto onde não há a música da esperança como em Deus e o Diabo, mas o ruído das metralhadoras que se sobrepõe à música do filme. Música e metralhadoras, e em seguida ruídos de guerra, ou seja, um canto de esperança. Não é uma canção no estilo «realismo socialista», não é o sentimento da revolução, é algo mais duro e mais grave. Fiquei feliz em ter colocado isto no filme, porque um mês mais tarde, quando li a comunicação de Che na Tricontinental, ele dizia: «Pouco importa o lugar onde encontrarei a morte». Que ela seja bem-vinda desde que nosso apelo seja ouvido… e que no repicar das metralhadoras outros homens se levantem para entoar cantos fúnebres e lançar novos gritos de guerra e de «vitória».
Mas qual é a canção do início de Terra em Transe?
(Glauber) – A canção de Terra em Transe é uma canção africana, canta da em língua africana no Brasil, e sua única finalidade é evocar um certo lugar, certa atmosfera dos mares tropicais, dos palácios barrocos. Esta canção é cantada em vários lugares, sobretudo na Bahia; Barraventotambém começa com uma canção africana. O mar é um mito para o camponês pobre, e é pelo mar que os portugueses chegaram no Brasil.
Você disse que, em Paulo Martins, há um lado Antônio das Mortes, mas há também um lado Manuel, porque Paulo vai também de um para outro, como Manuel ia do Deus Negro ao Diabo Loiro. Pensa-se também em Corisco: o personagem de Corisco é obcecado pela morte e por uma espécie de sonho metafísico que é muito curioso num bandido, e Paulo, o poeta, também pensa na morte.
(Glauber) – É verdade, porque ele é um pouco, como poeta, aquilo que Corisco é como bandido. Ê também um aventureiro que beira o perigo. Aliás, só pela morte Paulo Martins poderá se salvar; pois, inclusive, se escolher a revolução, ou seja, se ele se tornar um revolucionário, ele escolhe também a morte e esta escolha lhe dá possibilidade de vitória. Ele deve portanto se preparar para a morte. Trata-se de uma decisão para a qual devem-se romper todas as amarras. Não estou pronto para isso. É uma contingência trágica que todo homem do Terceiro Mundo deve enfrentar. Pode ser encarada, se quiserem, como posição neo-romântica, mas muito didática também. O que Guevara valoriza é que a guerrilha não é uma aventura romântica, mas epopéia didática. Um pouco como os personagens de western, com uma ressalva: a missão é muito precisa, trata-se de politizar. Aliás, vejo nisso o início de uma nova cultura, de um novo comportamento, de um novo estilo de homem e de ação; pormenorizando: a fala, as vestimentas e o comportamento dos guerrilheiros são algo novo.
O monólogo de Terra em Transe é muito bonito e é interessante saber que você queria intitular seu filme Maldoror.
(Glauber) – Eu li muito Os Cantos de Maldoror, infelizmente em português, porque no Brasil não encontrei a edição francesa. O que me marcou neste livro é a tortura permanente. Há um realismo do vômito. Foi muito criticada a estrutura do filme, seu aspecto irrisório. Queria dar mesmo esta aparência de vômito e acho que Paulo é homem que vomita até os seus poemas e as últimas seqüências do filme são um vômito contínuo. O discurso é evidentemente inferior ao de Lautréamont, mas há nele a mesma angústia.
Você escreveu primeiro este monólogo?
(Glauber) – Sim, depois alguns outros poemas e finalmente o roteiro. Filmei e, na montagem, inseri o monólogo.
A morte de Paulo tem aspecto estético. Em si, ela não tem nenhuma significação, porque não altera nada.
(Glauber) – Sim, porque ele toma consciência; neste momento preciso, ele morre por causa de um acidente, mas ele declara que «não se deve». Diz que é preciso aceitar a violência, enfrentar o destino num corpo a corpo. Em outro momento do filme, ele dizia a Sara que, quando se tiver consciência clara e completa de tudo, só a violência permanecerá, ele diz isto depois do comício político; lembra-a que dentro da massa existe o homem, e que o homem é difícil de manipular, mais difícil que a massa. Ele, claro, não pode aceitar a violência, por ser impotente, não tem organização para isso. No momento de sua morte, ele sabe que a violência é o caminho da revolução.
Quase no começo do filme há uma citação não legendada de Mário Faustino.
(Glauber) – Mário Faustino foi o maior poeta brasileiro de minha geração, morreu aos 33 anos num acidente de avião. Escreveu um livro que se tornou muito popular entre a juventude, chamado O Homem e sua Hora. E no poema Epitáfio para um Poeta ele dizia:
“Não conseguiu firmar o nobre pacto
Entre o cosmos sangrento e a alma pura…
Gladiador defunto mas intacto”
(Tanta violência, mas tanta ternura)
Foi isto que coloquei em meu filme, como homenagem; ele era um pouco como Paulo Martins.
Em cena muito realista, você utiliza o que vem a ser a estrutura de conjunto de Deus e o Diabo: um personagem fala em nome do povo. É comum no Brasil esse gênero de jogo simbólico?
(Glauber) – Para filmar essa cena, coloquei Vieira, o autor, no meio do povo, e eles pensaram que se tratava realmente de um comício político, que Vieira era mesmo um candidato. E mesmo nas cenas do interior, quando Vieira cumprimenta as pessoas da cidade, era como um comício político. Ele chegou e começou a fazer seu discurso, e nesse momento a polícia quis interromper a filmagem porque havia agitação, as pessoas queriam votar naquele homem (era na época das eleições para deputado). Eu aproveitei, filmamos ao vivo, bem rápido, num domingo à tarde. É a cena do início da campanha eleitoral de Vieira e tudo o que há nessa cena nasceu espontaneamente.
Eldorado é o nome de uma cidade?
(Glauber) – Não, Eldorado é antes o mito latino-americano do ouro. Quando os espanhóis chegaram na América, falavam de Eldorado. No filme Eldorado é ao mesmo tempo o nome da Capital e do Estado, enquanto que Alecrim é o nome de uma cidade, uma província do Estado de Eldorado. Isso poderá criar algumas dificuldades de compreensão na Europa onde, contrariamente à América Latina, não existem capitais com o mesmo nome do país. Alecrim, sendo uma província portuguesa muito conhecida, trouxe também problemas ao espectador brasileiro.
Esse tipo de confusão, como essa de Alecrim, por exemplo, torna-se grave, porque impede o compreensão de uma coisa importante que é a construção do filme, que ela é clara. Você não acha que no fim você mostra a situação de uma maneira direta demais, porque você está tão empenhado, e isso impede a compreensão?
(Glauber) – O plano final é longo (um minuto), e ele perturba mesmo um pouco, mas eu acho que depois de 40 segundos, as pessoas começam a compreender que essas metralhadoras têm significado; eu insisti na duração. Quanto ao desgosto do herói pelo carnaval, talvez seja muito vago, como palavra, mas a política brasileira é verdadeiramente um carnaval. A civilização brasileira é decadente. Nós somos realmente podres, estéreis e preguiçosos, de grande incapacidade artesanal e duma energia irracional que acaba, então, sempre no vazio. Tentei fazer com que o filme seja a expressão deste carnaval e de meu nojo violento diante da situação.
Paradoxalmente, a parte dedicada ao imaginário é talvez maior em Terra em Transeque em Deus e o Diabo.
(Glauber) – Quando filmei Deus e o Diabo, gostei muito da paisagem e da figura de Corisco também, e inclusive se assumi uma atitude crítica, sentia-me ligado a estes personagens. Ao contrário, como eu detestava todas as coisas apresentadas em Terra em Transe, filmei com certa repulsão. Lembro-me de que dizia ao montador: estou enojado porque não acho que haja um único plano bonito neste filme. Todos os planos são feios, porque se trata de pessoas prejudiciais, de uma paisagem podre, de um falso barroco, O roteiro me impedia de chegar à espécie de fascinação plástica que se encontra em Deus e o Diabo. Às vezes, pode ser que eu tenha tentado escapar a este ambiente, mas o perigo consistia em atribuir valores aos elementos alienados. O filme foi frequentemente filmado com a câmara na mão, de modo flexível. Sente-se a pele dos personagens, procurei um tom documentário. Tudo o que pode parecer imaginário é de fato verdadeiro. Fui, por exemplo, consultar arquivos de jornais para ver fotografias de políticos. Quando o Presidente Kubitschek chega a Brasília, por exemplo, os índios lhe levam um cocar de cacique etc. Quando filmei o comício onde o velho senador começa a dançar com as pessoas, mandei vir uma verdadeira escola de samba e botei Vieira no meio. Fizera a mesma coisa com Deus e o Diabo, porque lá também os camponeses pensavam que aquele que interpretava Sebastião era um verdadeiro beato. Não tinha previsto a cena da dança do senador, mas num determinado momento o ator se empolgou pela música e pelo discurso político: ele começou a dançar e filmamos o conjunto com a câmara na mão. Pablo Neruda já falava de «surrealismo concreto» por ser este aspecto surreal um fato dentro da realidade da América Latina e do Terceiro Mundo. Encontramos este surrealismo concreto em Asturias, Alejo Carpentier ou Nicolau Guillén.
E a canção “A praça é do povo como o céu é do condor”?
(Glauber) – É um verso de um poeta romântico brasileiro do século passado, Castro Alves, falecido aos 23 anos de tuberculose. É muito popular. Lutou em prol da abolição da escravatura dos negros, contra a monarquia, e em prol da República. Ele fazia comícios onde improvisava a sua poesia e escreveu um poema intitulado «O povo no poder», ao qual pertence o verso encontrado em Terra em Transe.
E quanto a Martín Fierro ?
(Glauber) – Nilson está realizando um filme que é a epopéia de Martín Fierro. É um poema épico revolucionário dos gaúchos da Argentina; e como estava fazendo um filme num espírito latino-americano, achei bom colocar uma citação de Martín Fierro. Vieira, líder populista, lê esta obra que é um poema progressista.
Você tem gosto pelos conflitos, entre a chama e as explosões de violência em Deus e o Diabo, entre a imagem e um comentário que não está diretamente relacionado com ela emTerra em Transe. Você valoriza muito a montagem.
(Glauber) – Há poucos dias, um amigo brasileiro me perguntou quando eu vou resolver contar uma história num filme. Caio sempre num conflito e tento abrir um discurso crítico sobre a história. O cinema político é uma discussão sobre estes fatos. E acho que a montagem está ligada a esta acumulação de vários conflitos, ao mesmo tempo subjetivos e objetivos. Gosto muito de Faulkner, porque há sempre nele uma acumulação simultânea e progressiva dos conflitos. Por outro lado, o meio social, os negros, a gente do Sul, isto poderia ser também o Nordeste do Brasil, ou algum país da América Latina. Existe aliás um romance de Faulkner que eu quero filmar, é The Wild Palms.
Disseram, em nossa opinião sem razão alguma, que você é discípulo de Buñuel, quando pelo contrário, formalmente ao menos, pensamos em Welles, em Terra em Transe.
(Glauber) – Da mesma maneira pode-se fazer um filme de western ou de cangaço tomando lições de Hawks ou de Ford mas invertendo o conteúdo e forma: isto é a antropofagia estética.
Há no seu filme uma impressão muito grande de violência, mas você não a mostra. Vê-se o revólver na boca do camponês e é tudo, ou então o suicídio de Álvaro é sugerido.
(Glauber) – Quando a violência é mostrada de forma descritiva, ela agrada ao público, porque estimula seus instintos sadomasoquistas; mas o que eu queria mostrar era a idéia da violência, e às vezes mesmo uma certa frustração da violência. Devemos refletir sobre a violência e não fazer um espetáculo com ela.
Há aliás um detalhe interessante a propósito de Terra em Transe: todo mundo apresenta sempre os revólveres ou as armas com os braços estendidos.
(Glauber) – Sim, como a política brasileira, que é uma política onde ninguém atira nunca; é um comentário irônico da situação.
Por que há uma barreira constante de polícia?
(Glauber) – É uma zona governamental, há um golpe de Estado, a presença dos soldados é então normal. E aliás, o filme sendo em flashback, vê-se no final que durante a sua fuga Paulo cruza com diversos caminhões do Exército.
Um detalhe dá à fuga de Paulo e sobretudo ao fato que ele está ferido pela polícia um aspecto imaginário: quando o policial atira nele, sua ação é fragmentada em vários planos e isso dá a seus movimentos alguma coisa de mecânico e irreal.
(Glauber) – Em um western ou em um filme policial pode-se dar o movimento todo, faz-se um filme pelo prazer de filmar esse gênero de coisa; mas em Deus e o Diabo, quando Antônio das Mortes é apresentado pela primeira vez, em ação, isto é, matando, eu fragmentei também essa cena, pois o interessante não é a ação em si mesma, mas o seu caráter simbólico.
Paulo falando com Sara diz: «Eu tenho fome de absoluto», e ela responde: «A fome», a fome física. Sara é personagem que tem uma experiência mais direta e mais realista da situação política, mas ao mesmo tempo ela fica com Vieira, o mistificador.
Ela é lúcida, mas é sempre comunista, sempre fiel à linha do Partido. Quando Sara vem com seus dois amigos ver Paulo para conseguir de uma vez sua adesão a Vieira, ele está consciente de que uma união com Vieira não levará a nada de positivo, mas nesse momento a sua consciência política sofre interferência existencial: como ele ama Sara, liga-se a Vieira por causa dela. No fim Paulo é derrotado, ela o deixa; é um personagem lúcido e político; ela continua a luta; é o único caráter «coerente» de Terra em Transe.
O personagem do Negro que marca os comícios políticos é interessante; é como o cego do Deus e o Diabo.
(Glauber) – É alguém que vai ser a memória dos acontecimentos, é também uma referência ao cinema direto.
Você utilizou Villa Lobos, Bach, Verdi e também um músico brasileiro, Carlos Gomes, no seu último filme.
(Glauber) – Villa Lobos me influenciou muito, eu já disse. Carlos Gomes é compositor de ópera brasileira do começo do século; ele inspirou-se muito em Verdi, e é ainda muito apreciado. Nos programas da Rádio Federal que se chama a Voz do Brasil, quando o presidente vai falar, toca-se Carlos Gomes. Eu utilizei sua música para as seqüências com Diaz, quando ele passeia no seu jardim, e quando há no filme uma intenção de paródia. De Verdi coloquei Otelo, porque era uma discussão sobre os ciúmes e a amizade e porque queria sublimar também um lado homossexual e solitário em Diaz.
No texto em que Positif (n° 73) publicou «A Estética da Fome» você dizia que o Cinema Novo tinha agora necessidade de fazer uma revisão dele mesmo. Em que ponto está ele, no fim de 1967?
(Glauber) – Depois dos primeiros filmes do Cinema Novo, organizamos uma sociedade de distribuição no Brasil, que os procura também colocar no mercado internacional. Nós temos uma certa liberdade econômica, que nos permite produzir nossos próprios filmes com toda independência. Paralelamente, eu acho que há um certo desenvolvimento das idéias e também da técnica e da expressão. O próximo filme de Nelson Pereira dos Santos, por exemplo, é bem mais ambicioso que Vidas Secas; da mesma maneira Carlos Diegues, cujo Os Herdeiros é mais político e mais ambicioso do que suas obras anteriores; e também Walter Lima Jr., que filma Brasil Ano 2000, e Joaquim Pedro com Macunaíma, o mesmo para Hirszmann com a Garota de Ipanema, para Gustavo Dahl com o Bravo Guerreiro, para Paulo Gil Soares, Proezas de Satanás, para Bressane com Cara a Cara, e para Paulo César Sarraceni com Capitu. Muitos filmes estão sendo feitos. O Cinema Novo viverá nos anos de 68-69 seus momentos decisivos. Se quatro ou cinco filmes forem do nível de Terra em Transe, teremos realmente uma revolução no movimento e o Cinema Novo terá saída. Senão o Cinema Novo passará por uma crise que não será definitiva, q/ue só acontecerá no caso de uma crise política, com censura total, etc… Nós chegamos à conclusão de que sem uma certa liberdade econômica não haverá liberdade artística, nem política, e é por isso que o Cinema Novo não tem estética definida.
Parece que o Cinema Novo vai, nesse momento, do campo para a cidade. Seus três primeiros filmes importantes (Vidas Secas, Deus e o Diabo e Os Fuzis) eram sobre o Nordeste, e agora ele aprofunda os problemas da cidade, no momento em que Guevara mostra que, ao contrário, ê preciso sair da cidade e começar pelo campo.
(Glauber) – Os teóricos diziam que não se devia fazer filmes sobre o campo, porque a política se faz na cidade. No Brasil se faz na cidade e no deserto, em toda parte. No filme de Walter Lima Jr. ela não se faz nem na cidade, nem no campo, mas no ano 2000, é uma espécie de science fictionpolítico. Nelson Pereira dos Santos vai filmá-la entre os índios. É história de antropofagia com um título muito engraçado em francês: “Comme il était bon mon petit Français». Ele se utilizou da narração de um jovem soldado francês que, durante as invasões francesas no Brasil, foi preso pelos índios; ele lhes ensina o francês e também a técnica de guer ra. Ele recebe uma mulher de presente, depois os índios antropófagos querem comê-lo, porque o respeitam. Nelson quer fazer um comentário sobre as relações entre colonizadores e colonizados e sobre intercâmbios culturais. É muito interessante, porque se a antropofagia não existe mais no Brasil como tal, há um espírito filosófico que se chama antropofágico.