Encontrei o livro On the road pela primeira vez um pouco depois que minha namorada e eu nos separamos. Eu tinha acabado de me livrar de uma doença séria da qual nem vale a pena falar, exceto que teve algo a ver com a separação desgraçadada e com o meu sentimento de que tudo estava morto. Então eu li, li numa velocidade tão intensa quanto o texto de Kerouauc, e enquanto lia ficava imaginando e filosofando sobre os vários aspectos que muitos nada tinham de filosóficos, apenas continuavam improvisados assim como a escrita do livro parecia ser em muitos pilares. Em torno de uma semana depois de terminado eu elegi: Jack Kerouac, hoje você acabou de se tornar meu escritor favorito e provavelmente o próximo livro que vou ler agora vai ser um de sua autoria e assim comprei Vagabundos Iluminados, Viajante Solitário, Tristessa e Os Subterrâneos, rapidamente devorados como o primeiro.
Eis que no ano de 2010 fico sabendo de uma adptação do clássico On the road para o cinema. O diretor? Um brasileiro chamado Walter Salles, de bom currículo. Desde a confirmação, as filmagens, os trailers, notícias com fotos a expectativa aumenta, não lembro de ter criado tanta expectativa para um pré-lançamento do que foi com On the road. Chamo só de On the road, o título é tão condizente e sintetizador com o conteúdo presente que traduzi-lo mesmo sem perda de sentido aparentemente muda seu contexto. O livro influenciou um magnífico time de escritores que seriam conhecidos posteriormente como a geração beat, incluindo muitos de seus participantes na história do livro, com nomes fictícios. Elmo Hassel e Herbert Hunk, Carlo Marx e Allen Ginsberg, Old Bull Lee e William Burroughs, Dean Moriarty e Neal Cassady, e Sal Paradise e Jack Kerouac. Todas são as mesmas pessoas, participantes da geração.
Então Sal parte em rumo ao tudo e ao nada, o que seria conhecido posteriormente como “sonho americano”, e vai viajar para o oeste. Jim Morrison pronunciou isso anos depois em The End, “the west is the best”. Indo e voltando, quase sempre acompanhado de um protagonista, um herói criado por Sal, chamado Dean Moriarty. Dean, no filme é um super-homem. Raramente dorme, bebe todas, come todo mundo (independente do sexo), dirige em alta velocidade, passa a noite acordado revezando mulheres, dança, nunca cala a boca e ainda acha tempo para trabalhar de manhã. A personagem Marylou, que acompanha Dean em suas viagens pela América é representada pela atriz do crepúsculo. Não preciso dizer o nome dela, todos sabem mais quem é a atriz do crepúsculo do que quem ela é de verdade. Enfim, é muito mais bonita que a verdadeira Marylou. Obviamente que ao adaptar a história de um livro entra uma questão subjetiva, que resultará na interpretação de quem o adaptou. Salles explorou toda a luxúria que Marylou carregava consigo por opção própria, esquecendo que ela participa bastante da história e não apenas vive fazendo sexo. Em algum ponto da história Jack Kerouac, no livro, escreve assim:
“[…] Vamos bronzear juntos nossas lindas barrigas. Vamos lá”. Íamos para o oeste, no rumo do sol, podíamos senti-lo através da janela do para-brisa. “Abram suas braguilhas enquanto mergulhamos na direção do sol.” Marylou obedeceu, sem hesitação, e eu também. Estávamos no banco da frente, os três. Marylou nos besuntou de creme, só por gozação. De vez em quando um grande caminhão passava zunindo; do alto da cabina, o motorista percebia, de relance, o lampejo desnudo de uma beleza dourada, sentada entre dois homens por uns segundos, enquanto desaparecia pelo vidro de trás da nossa janela.
Não é absurdo achar algum trocadilho no “besuntar de creme”, mas percebendo que no livro Kerouac é bem direto a certos assuntos, difícil é acreditar que ele deixaria essas isoladas entrelinhas para a reflexão de cada um. Foi o que aconteceu com Walters Salles que resolveu mostrar uma cena em que Marylou sentada entre Dean e Sal os masturba numa tarde de sol em plena autoestrada enquanto um caminhoneiro trafegando em sentido oposto enxerga a cena e, através do retrovisor do carro, aparece freando bruscamente. Freando pra que? Qual o sentido disso? Fora esses exageros com a evidente proposta de forçar situações para tonar o filme visualmente mais atrativo, a história caminha devagar. Não é culpa do diretor, nem do autor, mas On the road é um livro alucinante para quem o lê. A ideia é de que muita coisa está acontecendo ao mesmo tempo e que as histórias, as bebedeiras, as viagens e os sofrimentos são tão intensos e ansiosamente suplicam por mais, e eu quero mais, quero viajar ao oeste, agora ao sul, e vou finalizar tudo indo ao México. É assim que acontece, é impossível transpor tanto assunto em tão pouco tempo, as elipses ampliadas de tempo com a exclusão dos pré-acontecimentos não-filmados fazem falta ao contexto geral.
Quando cheguei ao cinema o cartaz do filme já tinha sumido. Já pensei na hora em ficar puto com o site que teria me dado a informação errado do cinema, mas não. A atendente do caixa explicou que o filme estava para sair de cartaz e por isso não o anunciavam mais. Uma semana em cartaz, talvez o suficiente para que todas as pessoas de Passo Fundo que já leram o livro possam verificar a versão cinematográfica da história, mas não sem antes perceber uma imagem levemente desfocada da tela, uma notável marca preta no canto superior direito e um ruído de frequência que iniciou por volta de 30 minutos do filme e se estendeu até os créditos. Para quem não é fã de On the road, o filme é cansativo. Admiro Walter Salles por finalmente ter trazido às telas uma obra essencial à literatura universal, mas acredito que o resultado teria sido melhor se fosse realizado anos antes com Francis Ford Coppola. Só sei que saí do cinema e pensei em reler On the road, e que ninguém sabe o que vai acontecer a qualquer pessoa, além dos desamparados andrajos da velhice, e eu penso então em Dean Mortiarty, penso até no velho Dean Moriarty, o pai que jamais encontramos, eu penso em Dean Moriarty.