Não sei que loucura é essa. Parece impossível explicar esse sentimento de derrota que me acomete em todo fim de noite e em todo começo de manhã. Me sinto sugado para um redemoinho de negatividade e parece que não há fim para o tormento.
Danielle está lá fora, podando as rosas em nosso jardim. Ela faz isso toda tarde; pega a tesoura e vai até a edícula e abaixa para analisar quais rosas já estão grandes o bastante. Então ela corta algumas, apara outras, traz as mais cheirosas para perto do rosto e se impressiona com o aroma. Isso me acalma toda vez.
“Você não vem?”, ela pergunta.
“Daqui a pouco”, respondo, sem saber exatamente se eu deveria me mover e destruir aquele momento.
Durante algum tempo eu estive infeliz ao lado de Danielle. Tudo o que eu queria era uma buceta nova, uma novidade, algo que me trouxesse a esperança de algo inovador. Meu hino auto proclamado era me perguntar quais drogas e quais mulheres iriam atravessar meu final de semana, quando Danielle ia para a casa de sua mãe. Eu estava fazendo exatamente o oposto do que havia lhe prometido depois de nosso primeiro mês juntos: nunca desistir de nós. Me disseram que as estradas da vida eram frágeis e que logo eu estaria velho e deveria aproveitar esses instantes. Eu queria poder jurar que estaria ao lado dela quando todos os outros viessem para dizer adeus. Queria dizer que todos os dias seriam os mesmos e que estaria tudo bem para mim se fossem todos com ela.
Mesmo depois de tanta besteira, eu ainda olhava para meus amigos e meus vizinhos e me parecia inacreditável como embora tudo parecesse inalterado, havia uma mancha cinza na história.
“Venha cá para fora”, ela diz, “aproveite a natureza”.
Ingênua, ela não sabia que eu estava apreciando cada segundo, como no dia em que nos conhecemos e meus olhos a seguiam por todos os cantos.
Agora, depois do ritual das rosas, ela vai para o canteiro atrás da garagem e observa os girassóis. Ela não entende quando algum deles não estão exatamente virados em direção ao sol. Se eu pudesse, atiraria no sol só para vê-lo sangrar, pois nesse momento ela pensa mais nele do que em mim.
Desde que nos mudamos, ando observando mais as pessoas. Cada uma tem um TOC diferente. Meu vizinho árabe não consegue sair de casa se não alisar a madeira da porta duas vezes em ambos os lados. Mas agora eu posso colocar uma mesa na varanda e escrever enquanto olho os vizinhos de frente e o horizonte e as pessoas que os visitam. Às vezes me pergunto quais seriam minhas preocupações se eu estivesse na pele delas. Não como se eu estivesse passando pelas mesmas situações, mas se eu as fosse, se eu fosse cada uma dessas pessoas. Se eu fosse meu vizinho árabe ou sua noiva. Eles saberiam como Danielle é simplesmente mágica ao sair da cozinha somente com o vestido de pijama? Eles saberiam quem sou eu agora? Talvez nem soubessem que nós estamos aqui.
Quando não estou escrevendo, gosto de vir para a varanda dos fundos com alguns cigarros. É como se eu estivesse tirando férias de mim mesmo, e isso é inacreditavelmente bom por um tempo. Não há obrigações nem tarefas. Bom, eu venho com os cigarros e o isqueiro e sento de frente para o gramado. Estou descompromissado. É meu lugar seguro. A fumaça me fascina. Gosto de ver aquela massa branca e densa subindo, sendo deixada levar pelo vento. As pessoas andam atribuindo esse significado pejorativo ao isolamento. Em qualquer etapa da vida, é necessário tirar um tempo para ficar só. Separar alguns dias para deitar e fechar os olhos. E só acordar dez horas. Então, preparar um café e ler os jornais e assistir Danielle descendo as escadas. É o que tenho feito.
Ela agora está voltando para dentro de casa.
“Me desculpe por não ter te acompanhado”, eu digo.
Então ela vem e se senta no meu colo. Sinto seu peso sobre minhas pernas, como se eu fosse a única plataforma necessária para protegê-la. Meu corpo é o único ninho do qual ela precisa para se abrigar. Então eu me lembro daqueles dias ruins e percebo o tamanho dessa estupidez, e o destino me recebe com um gancho de direita.
“Você quer uma omelete?”, ela me pergunta.
Respondo que sim, mas ela não se levanta. Sinto suas mãos suaves – mesmo após o trabalho de jardinagem – deslizando pelo meu braço. E sinto o cheiro de seu corpo e suas roupas. O cheiro que está em meus lençóis e que eu já disse que não deverão ser lavados.
“Quer que coloque queijo?”
“Sim, sim, sim!”
Ela sorri e se levanta e vai para a geladeira procurar os ingredientes. Dez minutos depois, estou comendo provavelmente a melhor omelete já feita em toda a história da humanidade e ela volta para o jardim. Está conectando as mangueiras e trabalhando para que todas as flores recebam uma boa quantidade de água.
Cinco anos atrás nós estávamos na formatura do filho de sua irmã. Todos vieram aqui em casa para se arrumar. Danielle estava indecisa entre o vestido prateado e o preto. Eu não sabia se eu deveria ir de tênis ou sapatos, então ela veio e decidiu por mim. Como acontecia sempre, ela decidia as coisas por mim e eu era deixado boiando em minha própria existência. Ela escolheu o vestido preto. Estava linda. Esteve sempre linda, mesmo quando meu cérebro hedonista lutava em provar o contrário. Todos estávamos alegres e sorridentes e fazendo ajustes de última hora nas roupas e tirando fotos e mais fotos e mais fotos.
Assim que chegamos ao salão de cerimônias, pegamos uma boa mesa, bem localizada, perto do palco principal. Sentamos todos juntos, eu e Danielle e sua irmã com a família. Logo depois o garoto foi chamado ao palco juntamente com sua turma. Mas, como no começo de tudo, eu seguia observando Danielle e me sentindo admirado em como ela era linda e como ela parecia ter sido feita para mim, e isso me fazia refutar qualquer ideia de abandono.
Cerimônia terminada, fomos para o lado de fora e eu acendi um cigarro. Foi quando confessei para Danielle que eu havia dormido com sua irmã. Coloquei para fora todas as cicatrizes em meu caráter, mas ela não brigou comigo. Apenas me perdoou. Isso acabou comigo, pois me lembrei do sorriso que ela abria toda vez que tomávamos banho juntos. Queria que ela tivesse me xingado, me agredido, cuspido em mim, pois assim eu me sentiria punido. Retornamos para o grande salão de mãos dadas e com um sorriso pouco honesto no rosto, mas como dois estranhos que subitamente tentavam não se desgrudar.
“Não quero voltar para casa com você hoje”, ela me disse na hora de irmos embora.
“Tudo bem”, eu respondi.
Ela queria dormir na casa de sua irmã. Os segundos que precederam nossa ida de volta foram talvez os mais dolorosos da minha vida adulta. Ela parecia estar melhor do que eu. No caminho, ela mantinha a mão sob minha perna enquanto eu dirigia, e cada rua atravessada, cada esquina cruzada parecia segurar um pedaço de nossa história que nós nunca mais teríamos.
Assim que chegamos e eu estacionei o carro, olhei para Danielle e vi a maquiagem borrada e as lágrimas que desciam com força. Saímos do carro e eu a deixei em frente à porta do prédio.
“Volte para casa comigo”, eu disse.
E eu vi como ela se desesperava à medida que balançava a cabeça negativamente e me mandava ir embora. Obedeci e voltei para o carro. Acendi um cigarro e olhei pelo retrovisor e dei partida enquanto ela ainda permanecia sozinha nas escadas do prédio.
Mesmo agora, quando tudo aparenta estar adequado, ainda tenho que enfrentar minha face sombria quando deito para dormir e quando acordo.
Todos me diziam que eu carecia de um Deus, mas a única força superior que me bastava estava bem ali no meu jardim.