Quando a segunda tour brasuca do Radio Moscow foi anunciada em nosso país (a segunda em menos de três meses), fiz o que qualquer um faria, resolvi repetir a dose, ou melhor, repetir o estouro epileticamente blueseiro de “Magical Dirt”, uma das pérolas lançadas este ano. Só que a logística foi tão homogênea que rolou até uma troca de verbos com Parker Griggs e cia, fora a costumeira resenha de mais um noite épica com um drink no inferno, Inferno Club.
O que nos resta agora é iniciar a trinca de atos que essas linhas visam elencar, primeiro com o ponto “Magical Dirt” (com a resenha do disco), a entrevista com o trio e as memórias de uma noite realmente caótica, uma alquimia dissertativa plenamente inspirada no mestre Frank Zappa e os atos I, II e III do fantástico Joe’s Garage.
http://youtu.be/h1TS6ce9Ve8
ACT I: RESENHA
O quinto disco dos americanos apresenta uma receita simples, porém elementar. Mais uma vez plenamente baseado nos estudos clássicos de mestres da física quântica dos anos sessenta e setenta, como Grand Funk Railroad, Cream e outros estudiosos com puro e complexo embasamento teórico, o ataque soviético de “Aces High” do Radio Moscow não se apresenta em atos tal qual este texto, ele é puramente kamikaze, e o vigor de seu tiroteio hardeiro é o que dá o gás para que minhas ideias fluam desta forma exacerbadamente rápida, tal qual um tiro.
O que esse trio apresenta é uma coisa simples teoricamente, mas que só grandes bandas apresentam: pegada. Alguns grupos fazem um show meia bomba, o Radio não, quando o trio sobe no palco percebe-se o grau de concentração devasso que a banda se insere, parece um culto budista, só que neste caso substitua os budas por velhos e moleques surdos fedendo à cerveja e substâncias torráveis.
Line Up:
Anthony Meier (baixo)
Paul Marrone (bateria)
Parker Griggs (guitarra/vocal)
Track List:
1. So Alone
2. Rancho Tehama Airport
3. Death Of A Queen
4. Sweet Lil Thing
5. These Days
6. Bridges
7. Gypsy Fast Woman
8. Got The Time
9. Before It Burns
10. Stinging
A essência não só deste disco, mas da gênesis dessa banda, é dialogar com todos os públicos. Ela conversa com o fã aposentado do Grand Funk e faz o moleque pentelho que idolatra o Cream chapar o côco de fone de ouvido, e o melhor, nota-se que a referência é antiga, é datada da máquina do tempo, mas além de fazer o ouvinte pesquisar, nutre o apreço pelo novo, pelo que está surgindo e se consolidando em sua PRÓPRIA época.
Esse ataque soviético, essa ode ao comunismo, e todo o peso que acompanha a caravana, trabalha com blues-rock e etc e tal, porém o mais importante é o material palpável. O senhor Parker Griggs trabalha com memórias, cria momentos que ficarão eternizados em nossa mente e é a prova concreta de que existe sim boa música, e que ela vai aos poucos sendo perpetuada no tempo. Riffs de cadeira elétrica.
Porrada que começa com “So Alone”, peso que fecha o rolê com o feeling e cria “Rancho Tehama Airport”, guitarra que exorciza o som cru de garagem eletrocutando cordas com “Death Of A Queen”, e um som que apoia a revolução do engajamento musical, cerca de 40 minutos de perda de neurônios em prol da fritação. Seja segurando a onda com um blues mais raiz no estilo de “Sweet Lil Thing” ou voltando ao costumeiro caos de “These Days”, o apogeu da jam faiscante e suas companheiras.
A ponte de “Bridges”, a radiação de “Gypsy Fast Woman” e toda a plenitude explosiva de um cometa que passa no Brasil de dois em dois meses exalando “Got The Time”, “Before It Burns” e todo o néctar analógico de “Stinging”.
E ter a oportunidade de entender melhor a atmosfera que o trio cria no palco em todas suas camadas e nuances de barulho foi muito interessante, deu até mais profundidade para o show que presenciei, pertencimento em prol do Rock ‘N’ Roll. Hora da entrevista de emprego.
ACT II: ENTREVISTA
O som de vocês tem muita daquela atmosfera de disco ao vivo, mas é claro que ao vivo a coisa é ainda mais orgânica. Depois de 5 discos de estúdio vocês pensam em registrar um live, ou até mesmo um DVD? Conteúdo é o que não falta!
Parker: Obrigado, Guilherme! Nós sempre tentamos deixar o nosso som o mais orgânico possível, e acredito que esse último álbum, “Magical Dirt”, foi o mais perto dessa atmosfera ao vivo que conseguimos chegar até o momento com uma gravação de estúdio. Ao contrário do que ocorreu nos discos anteriores, com “Magical Dirt” a banda gravou como faziam nos anos 60 e 70, apenas fizemos dubs de vocais e algumas partes de guitarra posteriormente, mas a essência instrumental do disco foi captada com a banda tocando junta na sala de gravação e toda a mixagem e masterização foi feita em rolos e rolos de fita, de forma totalmente analógica.
Anthony: É claro que adoraríamos lançar um material ao vivo, sobretudo com vídeo em alta definição, até mesmo em DVD. Infelizmente não temos nada planejado nesse sentido, mas quem sabe o que pode surgir daqui pra frente?
Como vocês lidam com o fato de possuÍrem fãs de classic rock mas ao mesmo tempo saberem que existe todo um novo público esperando por algo mais moderno, mesmo com o DNA clássico?
Parker: Nós somos aficionados pelo heavy psych sessentista e setentista, mas como crescemos nos anos 90 e 00 não podemos negar que há uma certa (e pequena) influência moderna no nosso som, um pouco subconsciente eu diria. Sobre o público, vemos esse com bons olhos, pois temos possibilidade de cultivar tanto uma base de fãs mais puristas como nós, como também curiosamente muitos fãs de metal e outros gêneros posteriores. Amamos tocar para qualquer público que frite ouvindo nosso som!
Os brasileiros gostam muito dessa linha de som que vocês praticam, mas só a Abraxas que possui essa grade diferenciada, vocês sabem se mais alguma banda nessa pegada quer vir pra cá? Ouviu alguém falar alguma coisa?
Paul: Sim nós conhecemos muitas bandas que são loucas para vir ao Brasil, e algumas delas já estão até em contato com a galera da Abraxas. Nossos amigos do Samsara Blues Experiment e The Flying Eyes já conversaram com o Felipe há bastante tempo sobre esse projeto e tenho certeza que estão planejando algo para 2015.
Parker: Algumas bandas locais da Califórnia também nos perguntaram sobre o trabalho que a Abraxas tem feito no Brasil, mas não sei se já combinaram algo com os caras. Espero que dê tudo certo e que o público brasileiro possa contar com mais shows de qualidade. Sabemos como é difícl agitar as coisas por aqui.
Hoje percebo que os públicos estão bem segmentados, logo o stoner abriga seus próprios festivais e etc, mais ainda não está do tamanho que merece. Como vocês mensuram a força desse movimento em tempos recentes (mesmo não tocando stoner) mas fazendo parte da mesma cena?
Anthony: Apesar de não tocarmos objetivamente stoner-rock, a cena resgata toda essa cultura dos anos 60 e 70, e não por acaso quando conversamos com nossos amigos de outras bandas observamos que nossas referências musicais basicamente confluem para grupos daquela época. É muito legal ver que na Europa a cena funciona praticamente de forma colaborativa, produtores de diversos países e regiões comunicando-se entre si, ao menos um festival bom e com bandas de qualidade a cada mês, e um público muito fiel que sempre comparece aos shows e não deixa a chama se apagar.
Paul: Obviamente ficamos felizes em fazer parte de tudo isso, e acreditamos que com toda a positividade que emana e faz mover essa cena, a tendência é apenas melhorar.
O Alex Skolnick ficou famoso por tocar trash metal no Testament, mas fora isso ele também toca jazz no The Alex Skolnick Trio. São dois extremos! Gostaria de saber se fora a linha blues-rock-psych, vocês possuem outras aspirações.
Parker: Todos da banda gostamos de tocar outros instrumentos e temos projetos paralelos em outras bandas. Nosso baterista Paul toca em duas bandas que seguem uma linha mais psych-prog-experimental, chamadas Astra e Psicomagia, e também já tocou em outra banda local chamada Joy. O baixista Anthony também tem um projeto paralelo chamado Sacri Monti. Procurem, pois são bandas de altíssimo nível, fora isso estamos sempre fazendo jams em nossas casas em San Diego, e onde mais houver uma bateria, um baixo e uma guitarra plugados.
Pelo estilo que vocês tocam o formato de power trio parece o melhor, mas vocês conseguem vislumbrar um quarteto, quem sabe até no estilo do Mondo Drag?
Parker: Estamos felizes sendo um Power Trio e não pretendemos mudar essa formação. Achamos que damos conta do recado.
Parker, toda vez que escuto você tocando, de alguma forma sempre penso no Alvin Lee, já vi em algumas entrevistas que quando o assunto é influência o nome que mais cita é o do Peter Green, mas o Alvin foi um cara que acabou lhe influenciado também?
Parker: Com certeza! Além dos clássicos guitarristas, também tenho muita influência das bandas mais obscuras do anos 60 e 70.
O processo de composição de vocês parece completamente baseado em jams, é assim mesmo ou vocês acabam sentando para escrever e etc? Como é o processo para gravar um novo disco, vocês escrevem no estúdio ou chegam com tudo na cabeça?
Paul: Normalmente o Parker já vem com as músicas estruturadas e arranjadas e Anthony e eu complementamos com o toque final nas respectivas áreas de atuação. Como passamos muito tempo juntos, em tour, viajando ou em jams em São Francisco, temos uma sinergia muito boa e o processo criativo flui com facilidade.
O que vocês andam ouvindo recentemente? De alguma forma acabou influenciando na gravação do “Magical Dirt”?
Parker: Nós somos verdadeiros nerds musicais, colecionadores de vinis e as raridades dos anos 60 e 70 certamente são as nossas inspirações. Podemos citar nomes como Bull Angus, Relax, Mad River, Blues Creation, Band, Pentagram, Blue Cheer, Fuzzy Duck, Road, Highway Robbery, apenas para vocês entenderem um pouco do que estamos falando.
Gostaria de agradecer pela atenção e pelo tempo reservado para a entrevista, e para finalizar gostaria de saber o que vocês conhecem de música brasileira e se isso acabou influenciando a banda de alguma maneira. Muito sucesso nessa tour e voltem logo!
Anthony: Muito obrigado, Guilherme! Nós é que agradecemos a oportunidade. Bom, como bons nerds musicais fizemos nosso dever de casa e ouvimos ao menos um pouco do que os nossos amigos e fãs do Brasil mandam para nossa apreciação. Nosso baterista Paul é um sedento colecionador de vinis e já conhecia bandas como Módulo 1000 e Ave Sangria. Conhecemos agora o som de Lula Cortes e fomos apresentados pela galera da Abraxas a algumas bandas brasileiras muito boas como Anjo Gabriel, Necro, The Galo Power, Muddy Brothers, Mar de Marte, Quarto Astral e Fuzzly (essas duas últimas com quem tocamos em outubro). Também estamos curiosos para ouvir as bandas com as quais tocaremos nessa próxima viagem, ouvimos falar muito bem de nomes como Muñoz, Rinoceronte e Quarto Ácido.
ACT III: O SHOW
Entender o que é de fato o terremoto rifferamático de “Magical Dirt” foi elementar para poder conhecer os protagonistas via perguntas e respostas, e agora, já plenamente vacinado, falar de mais uma noite com os caras no palco. Só que não é só de Radio Moscow que se alimenta um Abraxas Fest, a noite do dia 12 começou torrencial e ao som dos locais do Grindhouse Hotel.
Houve um delay estratégico até porque a chuva foi tanta que o trânsito foi quase um complemento da zona que essa cidade fica quando chove, por isso os trabalhos começaram as 20 horas. O Grindhouse Hotel é mais uma banda de stoner que está em puro processo de crescimento, e mais uma vez comprova o papel da Abraxas dentro dessa cena. Em todas as tours poucas atrações se repetem, o leque dos caras é variado, e isso nos mostra que estamos plenemente abastecidos de barulho, foi uma hora bem arrastado, no estilo perigrinação de peso.
O quarteto foi seco no EP “Chosen One” e a patada foi denso como é do feitio do quarteto, a levada do baixo ia dando uma desfibrilada na jam, a batera dava um delay estratégico entre ecos e pratadas, sempre esperando pra selar a ideia com a guitarra, unindo o peso. Um show fino igual um viking bêbado, pura maciez com pílulas vermelhas pra dar barato.
Logo depois sem muita enrolação era hora de ver um trio, uma verdadeira overdose da formação clássica do rock’n’roll e saindo um pouco da aresta mais fixa do stoner, os capixabas do Muddy Brothers, claros descendentes da dinastia negra de Muddy Waters, abriram a cozinha tramontina apresentando o som calcado no blues raiz e no interessante trabalho de guitarras que Will Just elenca para fazer o blues ter groove e a acidez correta dentro do Ph da hardeira.
Foi bem legal ver o Muddy em São Paulo, a banda cresce a cada dia, e depois de “Handmade” (lançado em 2013) os caras mostram que o trabalho segue a todo vapor, e ainda fritando com temas do já mencionado full-length os caras destilaram um pouco do som mais ousado do EP “Seasick”, uma cozinha mais experimental e com uma pegada ainda mais solta com pinta de live.
O Delta Blues foi muito bem descarrilado, a banda se perdia em jams muito longas, muito bem arquitetadas e exploradas, e o tato de cada membro com a parte técnica das faixas é bem alto. A banda é muito coesa e se mostrava muito concentrada em tocar cada nota exatamente como nós escutamos nos discos, e o fez sem rodeios, um tema atrás do outro, exalando fluência e domínio de repertório, sempre com o vocal do João Lucas guiando a fritação e arrebentando com uma ótima voz.
Fora que como se não fosse suficiente eles ainda resolveram encerrar o show com dois covers num medley muito bem trampado e surpreendente, primeiro com King Crimson e a odisséia do prog épico de “21st Century Schizoid Man” e depois um chá de memória regado a muito Blue Cheer e “Summertime Blues”. Minha única “queixa” foi a falta da gaita por parte do reverendo João, por que de resto foi um baita show.
Mas ainda faltava o néctar do puro creme do som setentista, a apoteótica volta do Radio Moscow para um palco que na primeira visita parecia uma miragem. Foram quase duas horas de quebra-quebra, e o que fica, além de me sentir um claro privilegiado por ter visto outro show fantástico, foi o “amadurecimento” que essa segundo tour trouxe tanto para mim, tanto para os presentes, creio eu.
Parece viagem mas no primeiro show da tour a impressão que tive foi que todo o Inferno Club estava petrificado com o barulho, e a forma como o Radio Moscow se apresenta também não ajudou a quebrar essa densa empatia, era sempre uma faixa atrás da outra, um solo mais chapante que o outro, fora um elo de entrosamento absurdo, que no dia 12 atingiu um grau que honestamente, achei que só existia na minha cabeça de fã.
Acho que com duas belas tours nacionais no curriculum o trio se acostumou com a energia insana que o pessoal da América do Sul carrega para os eventos. De fato, parece que cada show que vamos vai ser o último, por isso o exagero em cada celebração, e acho que quando tivemos o primeiro contato com essa hecatombe psych foi muito mais pela emoção do que pela razão, o show foi fantástico, mas o último foi bem melhor.
Durante mais de duas horas o que se viu e ouviu foi o puro som da época do Austin Powers com uma pitada mais atual e absolutamente contundente e voraz. A banda era uma só, o entrosamento beirou o ridículo. Em vários momentos olhava para Anthony e ele tocava olhando para cima, para o lado, para o chão… A tranquilidade era tanta que parecia que ele estava tocando no conforto do sofá da sala de sua casa, beirava o desleixo, mas o cara não saía do tom, as cordas entortavam a todo o momento e ele não olhava para ninguém, estava em sua própria viagem.
Olhei para o Parker e foi a mesma coisa. Pra não falar que ele não olhou para o lado nem uma vez, uma hora uma das cordas de sua Fender foi para o espaço e ele sinalizou para o Anthony segurar no groove até que ele arrumasse, e foi aí que os presentes viram que se trata de um ser humano, mas declaro que ainda não estou plenamente convencido.
Ele subia e descia a escala, acelerava sem efeitos, fazia uma imersão de pedais que atrasava até a passagem do tempo… Era uma radiação Chernobyl que se expandiu para todos os corners da casa e foi se elevando até parecer que a coisa ia pelos ares, mas aí a corda do reverendo quebrou e aí a panela de pressão deu um relax.
Não tinha intervalo pra falar com a plateia, trocar de guitarra, era uma faixa atrás da outra e ver o grau de eloquência que os caras possuem foi devastador. Era uma jam engatilhada na outra e a peteca não caiu, se eu acendesse um fósforo estaria soterrado nos escombros até agora, foi uma sinergia absurda, dava pra converter em energia eólica.
Nunca vi uma performance onde os músicos ficassem sem ao menos se encarar durante tanto tempo, mas o mais assustador não era nem o Parker ficar solando ou arrebentando nos vocais ao mesmo, nem mesmo o nível de timing que o senhor Meier possui, a força motriz do Radio Moscow estava no fundo do palco. Ouso dizer que o baterista Paul Marrone nem mexeu a cabeça, tudo que se viu eram seus braços em pura explosão enquanto as madeixas ficavam pendendo para o lado positivo da gravidade e ele inaugurava uma fábrica de reboque na cozinha da banda, praticamente um filhote de Corky Laing.
Muito mais intenso que no disco, muito mais surreal que solos no Youtube… Se você já descabela a insanidade escutando as gravações, meu amigo, mal sabes o que perdeu ao vivo, e se foi na primeira tour e não foi nessa, rapaz, pensa numa banda que evolui a passo de gigante, um completo absurdo. Um brinde ao comunismo, fé no Gorbachev que ele é justo… Estou ouvindo o eco da guitarra do cidadão Griggs até agora, mentes zunindo e cérebros derretendo a rodo, no próximo show vou levar um balde. E por último, mas jamais menos importante, vale ressaltar o trabalho das lentes vitais do cidadão responsável. Fernando Yokota mais uma vez captou o necessário e elementar desta noite, mas este não é o set completo, vejam todas as fotos no link abaixo e curtam sua página no Facebook.
flickr.com/photos/fernandoyokota