Essa é a última parte da série ‘A Era da Liquidez’, que discute a fundo sobre as principais reflexões, filosofias e ideias do polonês Zygmunt Bauman, um dos sociólogos mais intelectuais, inteligentes e precisos da atualidade.
A obra de Bauman é extremamente perspicaz na análise de problemas sociais que norteiam a experiência cotidiana do indivíduo contemporâneo, inserido na conjuntura de valor denominada de “Modernidade Líquida”.
O autor explora, cirurgicamente, alguns temas intrínsecos ao atual contexto social de liquidez. Dessa vez, o assunto é redes sociais.
Conexões líquidas
Em seu livro 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno, Bauman promove discussão sobre nossas conectividades interpessoais, que tendem cada vez mais a parecerem com as relações em redes sociais na internet.
No atual contexto de liquidez, as relações sociais são substituídas por outro tipo de relação que Bauman chama de conexão. Em redes sociais, sites e aplicativos de encontros, por exemplo, são criadas conexões, não relacionamentos. Em vez de parceiros, fala-se em contatos.
“Em uma sociedade onde estar aberto às oportunidades é fundamental, o mundo virtual é extremamente atrativo na medida em que é possível estabelecer conexões com muita facilidade, e desfazê-las na mesma proporção, fazendo com que tudo seja breve, superficial e descartável.”
Segundo Bauman, quando a qualidade das relações é reduzida, a tendência é que se tente compensar essa falta com uma quantidade absurda de parceiros. O melhor exemplo disso é a quantidade de amigos que as pessoas costumam ter nas redes sociais. São números que ultrapassam 500, 1.000 ou 2.000 “amigos”, algo obviamente impossível de manter em convivência no mundo real.
No livro, o autor explora principalmente as conexões amorosas em redes. De acordo com algumas pesquisas, Bauman percebeu que o sucesso de sites e aplicativos de encontros reside na facilidade em descartar, em deixar o outro de lado. Ou seja, o que transforma o relacionamento frágil (a conexão) em uma forma modernizada de se relacionar é a desnecessidade de haver compromisso entre as partes.
Em sites e aplicativos de encontros, considera-se a trivialidade. A excitação do contato é inexistente, a arte da sedução é desvirtuada; não existe maior exigência do que uma boa primeira impressão. Basta haver adequação de perfis para que uma nova conexão se crie e, com a mesma praticidade que foi criada, pode ser destruída. Assim, consegue-se substituir uma pessoa pela outra facilmente, sem necessariamente haver arrependimento.
“A mídia, potencial catalisadora e controladora das massas, é uma grande incentivadora dessa tendência dissolvente dos valores elevados da cultura humana, pois continuamente ela despeja na massa social a ideia de que está na moda o ato de se “ficar” com várias pessoas sem que mantenha compromisso duradouro com ninguém, assim, segundo os critérios dessa moral de consumo aplicada na dinâmica amorosa, amplia-se a quantidade de experiências afetivas.”
Bauman faz um simples questionamento: “Quando uma pessoa diz que “fica” com várias pessoas, de fato ela está ficando com alguém?
Troca-se de parceiro como se troca de roupa e, assim, a lógica do descarte pessoal triunfa na liquidez humana da contemporaneidade.
A condição amorosa é banalizada em redes sociais, onde as pessoas não precisam atualizar status de relacionamento para se lembrarem de que agora estão compromissadas, mas elas fazem isso na tentativa de mostrar aos outros o progresso de suas atitudes, como se não tivessem plena segurança de suas ações ao ponto de lidarem consigo mesmas. Agora, no contexto da liquidez, tais atitudes representam apenas surtos esquizofrênicos de valentia; manifestações de uma coragem líquida.
Confessionários eletrônicos
O principal atrativo do mundo online é a ausência das contradições do mundo offline. Os contatos podem ser excluídos com extrema facilidade, o que na vida real é bem mais desgastante, já que as pessoas são preconceituosas e as diferenças entre elas tendem a desgastar a qualidade de seus vínculos afetivos.
“Jovens equipados com confessionários eletrônicos são apenas aprendizes treinando e treinados na arte de viver numa sociedade confessional, uma sociedade notória por eliminar a fronteira que antes separava o privado e o público, por transformar o ato de expor publicamente o privado numa virtude e num dever público.”
Da mesma forma que uma conexão, a identidade em rede social é algo intangível. Sempre que necessário, podemos alterar nosso perfil e informações cruciais para transmitirmos as melhores impressões, como se caráter, valores e personalidade fossem constantemente modeláveis como são os nossos gostos.
Quanto a isso, Bauman faz uma analogia com fotografias, que sempre tiveram o propósito de fixar momentos no tempo a fim de dar valor às lembranças relevantes, e agora elas podem ser editadas e alteradas para que tudo seja maravilhoso e belo à própria imagem.
Na era da liquidez, a conexão/desconexão é um processo social sistemático. A questão é saber se pessoas acostumadas a tanta superficialidade serão capazes de interagir de forma plena e eficaz no modo offline, com relações cara-a-cara que exigem espontaneidade cada vez mais escassa.
“Os contatos online têm uma vantagem sobre os offline: são mais fáceis e menos arriscados — o que muita gente acha atraente. Eles tornam mais fácil se conectar e se desconectar. Casos as coisas fiquem quentes demais para o conforto, você pode simplesmente desligar, sem necessidade de explicações complexas, sem inventar desculpas, sem censuras ou culpa. Atrás do seu laptop ou iPhone, com fones no ouvido, você pode se cortar fora dos desconfortos do mundo offline. Mas não há almoço grátis. Entre as coisas perdidas estão as habilidades necessárias para estabelecer relações de confiança, as para o que der vier, na saúde ou na tristeza, com outras pessoas. Relações cujos encantos você nunca conhecerá a menos que pratique. O problema é que, quanto mais você busca fugir dos inconvenientes da vida offline, maior será a tendência a se desconectar.”
Ao se conectarem ao mundo pela internet, as pessoas estariam se desconectando da sua própria realidade? Sim.
O mundo online é uma excelente maneira de fugir da realidade, algo que seres humanos costumam fazer de acordo com sua natureza líquida.
O mundo virtual, que deveria proporcionar a aproximação entre os indivíduos, acaba então motivando a ruptura interpessoal, formando relações sociais assépticas, dissimuladas e oblíquas.
“Eu desejo que os jovens percebam razoavelmente cedo que há tanto significado na vida quando eles conseguem adicionar isso a ela através de esforço e dedicação. Que a árdua tarefa de compor uma vida não pode ser reduzida a adicionar episódios agradáveis. A vida é maior que a soma de seus momentos.”
Referência bibliográfica:
BAUMAN, Zygmunt. 44 Cartas do Mundo Líquido Moderno.
No vídeo abaixo, Bauman fala um pouco mais sobre a virtualização das relações humanas, atendo-se às redes sociais: