Franz Kafka foi o mais importante escritor tcheco da Literatura. Nascido em 1883 na cidade de Praga (que na época pertencia ao império austro-húngaro), ele cresceu sob influência de três culturas: judia, tcheca e alemã.

Como escritor, Kafka fazia parte de um movimento literal chamado Escola de Praga, que tinha forte atração pelo realismo, certo apego à metafísica, uma grande inclinação para a racionalidade e um leve traço irônico.

Kafka é considerado um dos maiores pilares da literatura da contemporaneidade. Seus livros (em especial A Metamorfose) são ótimos tratados sobre a condição humana em meio às relações sociais modernas.

Os principais temas propostos por ele são a realidade social contemporânea, o capitalismo selvagem, a opressão burocrática das relações trabalhistas, a vida urbana avassaladora, os conflitos ideológicos, a fragilidade do homem frente aos problemas cotidianos e principalmente a correlação entre utilidade e significância nos determinismos de valor.

Quanto à linguagem, Kafka era formal, linear, previsível e um tanto impreciso mas, mesmo assim, seu método expressivo chega a ser elegante.

Ele não se preocupava muito com estética, razão de suas obras terem certa deformidade ortográfica. Raramente usava melodramas ou conectivos emocionais, pois ele era frívolo na questão da dramaticidade.

Essencialmente, Kafka era detalhista, simplista e bastante realista. Embora fosse considerado um escritor racional (de certa forma frio), Kafka sempre viu na literatura uma ótima maneira de gerar empatia e solidariedade:

“O livro deve ser como um machado que quebra o mar gelado que existe em nós.”

A Metamorfose

Kafka levou 21 dias para escrever A Metamorfose, sua novela mais aclamada.

A obra foi finalizada no final de 1912. No início daquele mesmo ano, o tcheco havia escrito à esposa Felice Bauer contando que a inspiração para a história veio num dia qualquer, quando ele estava deitado tranquilamente em sua cama, apenas pensando em coisas aleatórias. Naquele momento ocioso foi que Gregor Samsa, o protagonista, materializou-se de sua mente.

“Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso.”

Essa célebre frase de abertura do livro pode passar a impressão de ser uma obra de ficção científica, mas não é. Trata-se de um romance, e que difere da maioria, uma vez que começa pelo clímax e daí vai se desenrolando.

Gregor Samsa é o protagonista e epicentro da história. Os outros personagens aparecem categoricamente como funções (pai, mãe, irmã, chefe, gerente, etc), e todos eles são definidos através do relacionamento com Gregor.

Para quem gosta de uma narrativa corrida, o livro pode agradar. Há pouquíssimos diálogos, que são dispostos irregularmente. O curso dos eventos é cronológico, sem flashbacks e, como o livro é curto (cerca de 70 páginas), acaba sendo fácil finalizar a leitura em apenas algumas horas.

A história é dividida em 3 fases:

  • Na 1ª fase, vemos um Gregor recém-metamorfoseado que se sente dominado por conflitos existenciais da condição de inseto, e observamos também a maneira como é recebido por sua família em sua nova forma.
  • Na 2ª fase, percebemos um cotidiano em que Gregor é rejeitado e ameaçado por sua família.
  • Na 3ª e última fase, assistimos um Gregor abalado, incompreendido e repugnado, psicologicamente fraco e arruinado.

O real peso das mudanças

A Metamorfose relata um impasse familiar consequente de uma drástica mudança de vida.

Uma vez, Gregor mantinha orgulhosamente o papel de provedor de sua família. Só que, após repentinamente se tornar um inseto, ele passa a ser um foco de problemas, um agente de conflito e mal-estar, um desgraçado causador de infortúnio; basicamente um estorvo que precisa ser eliminado.

Na iminência do conflito entre o útil e o agradável é quando as pessoas mostram sua face, e claramente notamos isso no decorrer do livro.

Em A Metamorfose, Kafka declara que a vida simplesmente acontece, independente dos desejos e ambições do homem. O pesadelo integra naturalmente o cotidiano: frio, formal, tenebroso, real.

Kafka também nos mostra que é crucial estarmos devidamente preparados não só para as mudanças em nós mesmos, mas também para as transformações que ocorrem nos outros e tudo que isso advém.

É fácil aceitar o fato de que a única certeza na vida são as mudanças, mas, na prática, é muito mais complicado que isso. Gregor Samsa que o diga.

Uma síndrome da contemporaneidade

A Metamorfose demonstra que, especialmente numa sociedade capitalista, existe uma linha muito tênue entre indiferença e consideração, entre descrédito e valorização, e entre solidão e reconhecimento.

No livro, a vida de Gregor se resume unicamente em trabalho; no cumprimento de uma profissão infeliz, que ele mantém com o único propósito de aliviar a desgraça financeira que pôs sua família em estado de desesperança.

Gregor odeia o que faz, mas ele não se importa, contanto que esse sacrifício gere renda suficiente para sustentar sua família. No entanto, com o passar do tempo, a família de Gregor passa a acreditar que é a obrigação de Gregor sustentá-los. E nada mais que isso.

Ao se deparar como inseto (condição obviamente inviável de trabalhar), Gregor começa a notar que seu mundo está de fato arruinado, uma vez que todos seus sonhos, valores e aptidões se tornam nulos da noite para o dia.

Mesmo inseto, Gregor ainda tenta se enxergar como um ser humano solidário e empático, mas a dura realidade vai empurrando-o para o isolamento e a solidão. A metamorfose em Gregor é a pura manifestação da humilhação e do desprezo que passou a depredá-lo a partir do momento que não pôde mais ser explorado.

Antes de a metamorfose ocorrer, Gregor era parasitado pela família; após a metamorfose acontecer, a família é parasitada por ele. Antes Gregor fornecia, depois passou apenas a consumir. Antes Gregor servia como sustentáculo da família, depois só viveu de ser sustentado por ela. Antes ele era tratado como “ele”, e depois como “isso”.

Da mesma forma que Gregor foi metamorfoseado, o amor e carinho dedicados a ele também se metamorfosearam. A aparência importa sim, e no caso de Gregor, valeu tanto mais que sua dignidade.

Nessa clássica metáfora da metamorfose, Kafka fez uma crítica certeira à sociedade contemporânea: os interesses sociais não são tanto emocionais, mas capitalistas.

Outra filosofia de Kafka é que, embora ele enxergasse na solidariedade a melhor demonstração de respeito pela dignidade humana, paradoxalmente ele também pensava que a solidariedade é fútil pois, segundo ele, a empatia é sempre indissociável do interesse: uma verdade de fato.

O valor agregado à Gregor dependia estritamente de sua utilidade. Quando virou um inseto aparentemente asqueroso e inútil, seu valor se perdeu. Quando Gregor não mais servia aos propósitos capitalistas da família, sua morte foi ansiosamente esperada, como um ideal de libertação.

Esse livro é uma profunda análise do valor sentimental associado ao interesse visível que as pessoas demonstram ter não por seus semelhantes, mas sim pelos bens materiais e o conforto que proporcionam, evidenciando assim o real desinteresse que a sociedade tem pelas pessoas improdutivas.

Somos importantes enquanto úteis. Quando temos algo a oferecer, nossa importância é facilmente notada. Quando não temos o que prover, essa importância simplesmente inexiste. Uma síndrome da contemporaneidade bizarramente narrada por Kafka.


Referências Bibliográficas:

KAFKA, Franz. A Metamorfose.

CARONE, Modesto. Lição de Kafka.