Quatro olhares para Clarice

Clarice Lispector foi um enigma. Ainda é, na verdade, para todos aqueles que adentram em seu universo considerado por muitos como hermético mas, na verdade, nada mais é do que uma viagem interior guiada pelo fluxo de pensamento da escritora e seus personagens tão marcantes. No dia 10 de dezembro, Clarice Lispector completaria 98 anos se viva fosse e sua obra segue atual, um cânone literário brasileiro.

A prosa intimista de Clarice é cercada pela sua subjetividade. Nascida em um vilarejo ucraniano e batizada como Chaya Pinkhasovna Lispector, mudou-se para o Brasil aos dois anos de idade. Sua família era judia e fugia da perseguição da Primeira Guerra Mundial, o refúgio foi encontrado em Maceió e Recife.

Aos 14 anos, a jovem Clarice, nome adotado no Brasil, perdeu a mãe e mudou-se para o Rio de Janeiro com o pai e duas irmãs. Dois meses antes de morrer, vítima de um câncer nos ovários, Clarice lança A Hora da Estrela e nos presenteia com sua última personagem feminina, Macabea, que dessa vez tem um narrador masculino na história. Clarice partiu um dia antes de completar 57 anos.

Ler Clarice pode ser duro se uma de suas obras caírem em mãos desavisadas, é preciso ter uma alma sensível ou, pelo menos, em abertura e fôlego para um mergulho visceral no pensamento humano. Não é à toa que Lispector é considerada uma das maiores escritoras judias depois de Franz Kafka. É uma esfinge: decifre suas obras ou elas te devoram.

Mas, tentaremos mantê-los intactos, sem se despedaçar. Por isso organizamos algumas dicas de leituras da escritora e também sobre a escritora para que você decifre a esfinge de peito aberto ou, como ela preferiria, com o coração selvagem.

A Hora da estrela – 1977

A sonhadora e ingênua Macabea é uma nordestina em meio ao caos da cidade grande. Vivendo no Rio de Janeiro, é uma moça tão pobre, mas tão pobre, que só tem condições de sustentar-se com cachorros-quentes.

Sua vida simples e sem grandes emoções ganha um pouco de cor quando começa a namorar Olímpico, mas o romance existe apenas para ela porque seu par não é lá tão romântico quanto ela gostaria. Uma visita na cartomante muda totalmente a vida de Macabea, literalmente.

Pegue o livro e deixe que a miséria e o sonho de Macabea lhe guiem pela crítica fina e suave que Clarice traça sobre a vida na cidade grande, o destino dos nordestinos desassistidos e entregues à própria sorte em sua jornada, o destino feminino que restringe os sonhos antes de alcançar emancipação e empoderamento, o abandono e a individualidade.

Clarice: Uma vida que se conta – 2013

O livro de Nádia Battella Gotlib reúne as considerações críticas da obra de Clarice Lispector e, mais do que isso, traz dados biográficos da autora que se revelam essenciais para a compreensão do contexto de Clarice, de sua subjetividade e seus pontos de vista, que culminara, claro, em cada obra escrita.

É uma leitura fundamental para quem quer conhecer mais sobre a obra, a mulher, a escritora e jornalista Clarice Lispector. Como a própria sinopse do livro adverte: “Paralelamente, surgem outras questões de interesse referentes a múltiplos agentes culturais que interferiram na formação da personalidade artística de Clarice Lispector: suas raízes ucranianas judaicas, o solo nordestino da infância e pré-adolescência, os grupos intelectuais do Rio de Janeiro dos anos de 1940, os países da Europa e os Estados Unidos, onde viveu durante quase dezesseis anos, e, de novo, o Rio de Janeiro das décadas de 1960 e 1970.

A autora inclui, nessa edição revista e ampliada, dados recentemente descobertos, imagens inéditas e fontes bibliográficas de importância para a melhor compreensão da vida e obra de Clarice

Clarice Lispector: Todos os Contos – 2015

Benjamin Moser é o autor e prefaciador da obra ficcional lançada em 2015 e que reúne todos os contos da escritora.

Nos contos, o mergulho de Clarice é tão profundo quanto nos romances que escreveu, mas talvez seja mais intenso, dada a brevidade dos textos. Da juventude ao fim da vida da escritora, Moser tomou para si o desafio de reunir os contos de Clarice que, antes, estavam espalhados em diferentes tomos e brochuras.

Clarice se joga em busca do indizível, lança-se ao escuro na esperança de trazer alguma luz enquanto reflete os dramas, as angústias da alma humana enquanto olha para a sociedade com olhos críticos e sensíveis ao mesmo tempo.

Esse é o espaço onde Clarice revela-se como uma pessoa cercada de referência literárias, mostra a sua capacidade de criação e de subjetividade.

A paixão segundo G.H. – 1964

Narrado em primeira pessoa, a obra lançada por Clarice em 1964, traz a história de uma mulher de classe média que resolve organizar a casa após despedir uma empregada da qual mal lembra as feições. Como decisão, começaria pelo quarto que a empregada ocupara em sua casa e surpreende-se ao descobrir que aquela mulher, que para ela era uma estranha, ocupara sua casa com mais proveito que ela mesma ao fazer do quarto a única peça ensolarada, mesmo que largada em meio as valises abandonadas da proprietária.

Poderia ser um livro qualquer com uma narrativa banal, mas não é pois o leitor é conduzido pelo fluxo de consciência da personagem narradora e embarca na aventura de redescobrir-se junto a ela. A escrita concentrada e intensa traz uma Clarice que transborda o domínio da linguagem, da metáfora e da construção de sentidos.

Bônus

Entre o cansaço e o jeito blasé, o olhar de Clarice percebido em sua última entrevista é como as suas linhas: mistério e desafio para quem se dispões a decifrá-la.

Chaya, esse foi o nome de batismo de Clarice e, em judeu, significa vida. Mal sabia Clarice (ou sabia?) que seu nome de batismo se transformaria justamente no seu maior objeto de escrita.