Como Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo, ajudou a salvar a catedral da demolição

Igreja estava em ruínas no século 19, quando escritor francês publicou sua obra-prima

Notre Dame de Paris

A palavra esculpida na parede significa “destino”. Assim começa o trágico romance Notre-Dame de Paris, publicado pelo escritor francês Victor Hugo em 1831.

Muitos lembram a história como uma crítica ao julgamento das pessoas pela aparência ou status: o protagonista, Quasímodo, nasceu monstruosamente deformado e foi deixado nos portões da igreja, onde cresceu. O antagonista do livro é o arcebispo de Paris, Claude Frollo, que dá o trabalho de sineiro para o menino. Depois, pai e filho adotivos se apaixonam pela mesma mulher, uma garota de 16 anos que dança pelas ruas da cidade e é chamada de La Esmeralda. Frollo acaba traindo La Esmeralda, enquanto Quasímodo tenta salvá-la. O monstro se torna o herói, mas é tarde: a menina é enforcada por um crime que não cometeu. Furioso, Quasímodo joga Frollo do teto da catedral de Notre-Dame e passa o resto dos seus dias escondido no cemitério onde La Esmeralda foi enterrada.

Renomeado de O Corcunda de Notre-Dame quando foi publicado em inglês, o romance reverteu o hoje padrão de herói do cinema ou da literatura. A obra, porém, não é apenas sobre um garoto deformado tentando salvar a vida de seu amor platônico: ela é, antes de tudo, um romance sobre a arquitetura gótica. O foco moral do roteiro é a catedral de Notre-Dame, em Paris, a arquitetura é o cenário, dá personalidade aos personagens e liga todos os seus destinos. O protagonista do livro não é uma pessoa, é uma construção que Victor Hugo considerava senciente.

A arquitetura gótica evoluiu do estilo romanesco por volta de 1.100 d.C e alcançou seu ápice na metade dos anos 1400. No século 19, quando Victor Hugo escreveu o livro, era a época da Renascença. Assim, os parisienses consideravam as construções medievais vulgares e monstruosas. Chamar um prédio de “gótico” era um insulto, uma referência a tribos góticas e vândalas germânicas consideradas “bárbaras” pelos franceses. Então, a história gótica de Paris foi colocada abaixo em nome de projetos mais “respeitáveis” – ou mais “lucrativos”.

Victor Hugo estava alarmado. Ele acreditava que a arquitetura tinha alcançado seu auge durante a era gótica, como diz no capítulo 2 de sua obra-prima: “Do início de todas as coisas até o século 15 da Era Cristã, a arquitetura foi o grande livro da humanidade, a expressão por excelência do homem em seus vários estágios de desenvolvimento, tanto em força como talento”. Ele amava a Paris gótica e queria que suas estruturas fossem preservadas. As torres de Notre-Dame, assim, eram símbolo de um glorioso passado da cidade. Para o escritor, os arquitetos renascentistas e seus projetos não tinham nada a oferecer à história parisiense.

Em 1829, porém, a igreja de Notre-Dame estava em ruínas: a catedral tinha sido usada como uma fábrica de pólvora durante a Revolução Francesa e ficou seriamente danificada. Logo, suas grandes pedras foram destinadas à construção de pontes pela cidade. Victor Hugo temia que, assim como muitas estruturas góticas de Paris, logo a Notre-Dame seria demolida. Assim, ele decidiu fazer algo.

A primeira coisa foi escrever um editorial declarando “guerra” aos demolidores da cidade. Em Guerre aux demolisseurs!, ele dizia que um “grito universal deve finalmente chamar a nova França a ajudar a velha”. Anos depois, saiu o livro (janeiro de 1831) aclamado pela crítica.

O sucesso do livro levou milhares de franceses do interior de outras cidades do mundo a Paris para visitar o templo que Victor Hugo descreveu com tanto amor. Até hoje, os turistas querem o lugar em que Quasímodo escondeu La Esmeralda dos soldados, a sala em que Claude Frollo conspirou com o rei da França ou o lugar em que uma “triste alma” escreveu a palavra “destino” na parede.

Nos primeiros anos, porém, o que o público encontrava era uma igreja com riscos de cair no coração do centro de Paris. Como o escritor havia antecipado, os leitores acabaram concluindo que os parisienses não tinham parado para observar a beleza, o tamanho e os detalhes da sua igreja e, mais do que isso, saíram em defesa da Notre-Dame – em 1844, muito por causa da obra, começou um grande trabalho de restauração.

Em vias de completar 200 anos, o livro é inseparável da igreja, uma relação mágica que é estudada nas faculdades de arquitetura, que atrai milhões de visitantes a Paris e muitas vendas para as edições da obra, assim como dos mais de 50 filmes, séries, músicas e games que foram feitos a partir da história original.

A Notre-Dame, uma das primeiras catedrais góticas do mundo, foi terminada em 1345 e, 500 anos depois, o fato de o prédio ser uma obra de arte e uma maravilha da engenharia humana não importa mais. Em 1830, a igreja estava condenada – até uma história ficcional transformar a relíquia em tesouro nacional. A lição para a arquitetura moderna é clara, segundo o projetista francês Richard Buday: “Uma construção sem uma narrativa oral, prosaica ou gráfica está condenada ao esquecimento”.