Jon abriu a porta do bar e caminhou como um carrapato lentamente até o balcão e pediu uma bebida.

– Sequestraram a filha do presidente – disse o barman.
– É? – disse Jon.
– É, agora é que a gente vai entrar na merda de verdade.
– Não tem ninguém olhando por nós agora, não é?
– É.

Jon tomava sua dose e ouvia Bach em sua cabeça. Cello No 1 em G maior. Eva então atravessou rapidamente a porta do bar e foi ao encontro de Jon. Ele a observou enquanto vinha, com sua calça jeans e camisa larga. Não se viam há pouco mais de dois anos, e agora, de repente, estavam juntos outra vez. E era estranho como as coisas não haviam mudado. Sem dizer uma única palavra, ele sabia que não era um recomeço, mas um retorno ao ponto onde as coisas ficaram feias. Eva estava mais magra e com uma expressão branda e suave no rosto.

Jon terminou sua bebida.

– Vamos procurar uma mesa – ele disse.

Sentaram-se perto do bilhar, onde era mais isolado e a música não parecia tão alta.

– O que é isso no seu braço? – Eva o perguntou.
– É uma cicatriz – ele respondeu. – Acho que apaguei uns dois cigarros aqui.
– E por quê? Achou que ficaria bonito? Pois não ficou.
– Não foi por isso – ele disse, escondendo um sorriso sarcástico. – Estava tentando colocar os pensamentos em ordem.
– Parar de pensar nas coisas ruins?
– Está vendo como você me entende?! É por isso que deveríamos ficar juntos!

Jon pediu uma outra bebida. O barman veio correndo, desengonçado, como um cão gordo, trouxe-lhes as bebidas e voltou para a frente da tevê. Todos os canais noticiavam a situação da filha do presidente.

– Mas acho que estou melhorando – Jon continuou.
– Ah! – ela disse, ironicamente – Você está “melhorando” desde quando a gente se conheceu.
– Bom, pode ser que agora você se apaixone por mim.
– Essa é a sua cantada?
– Não, meu bem, é só tédio.
– Você não mudou nada, não é?
– Não, mas eu te amo! Preciso de você! Nosso amor é eterno. Você é o meu marfim branco da costa africana!
– Marfim o que? – Eva perguntou, rindo.

Jon bem que tentava, mas logo saía de sua armadura de amargura e solidão, e mostrava o rapaz amistoso que era. É verdade que Jon ainda guardava algum rancor de Eva e até pensou em procura-la, mas sabia que alguns erros simplesmente precisavam ser feitos para que se pudesse ter certeza de alguma coisa, como uma receita ruim que se faz para nunca mais ser repetida.

– Talvez agora seja a hora da gente ficar – ele disse.

Saíram do bar. Não foram notados pelo barman.

Foram até o apartamento de Jon. Um flat pequeno no nono andar, no centro da cidade. Ele entrou na frente, empurrando a bagunça para baixo da cama e tirando a roupa suja do chão. Eva não se importaria com a desorganização, mas ficou feliz por Jon estar se empenhando em trata-la bem.

– Acho que tudo está minimamente apresentável agora – ele disse, quase suado.
– Está tudo bem – ela respondeu, rindo.
– Isso aqui está sempre um caos.

Eva sentou-se na cama de Jon enquanto ele buscava duas cervejas na geladeira. Deixou a luz da cozinha acesa e ligou o rádio.

– Você se lembra do motivo? – ela perguntou.

Jon sabia exatamente do que Eva estava falando. Em seu íntimo, estava aguardando essa pergunta. Mas fez-se de bobo:

– Motivo de quê?

Eva permaneceu calada, segurando sua cerveja.

– Eu sei – ele continuou. – Não sei precisar se esqueci ou se perdoei, mas sei que foi necessário.
– É que você nunca mais falou comigo.
– Bom, eu tenho essa dificuldade em expressar minhas frustrações. Acho que nunca estou me sentindo confortável o bastante para ser totalmente franco quando sinto raiva ou desgosto.
– Entendi.
– Isso vem de casa, não se preocupe.
– Mas você pode confiar em mim.
– Eu sei.

Em Perfume, de Patrick Süskind, a citação preferida de Jon: “A infelicidade do ser humano provém do fato de ele não querer ficar quieto no seu quarto, onde é o seu lugar”. E pensou se talvez Eva não pudesse, mesmo que por alguns minutos, fazer parte desse cenário fantasioso particular.

– Vou fazer um café, tudo bem? – ele disse.

Jon levantou-se e foi para a cozinha. Eva foi para a varanda e se acomodou em um sofá, apoiando os pés na pequena mesa em sua frente.

Já estava tarde, e quase não havia cheiro humano nem movimento humano, apenas o cimento do asfalto e o concreto dos prédios e a luz dos postes e o cheiro de urina nas ruas e o sêmen congelado nas calçadas, crianças perdidas, artistas de rua, penumbra e a vida, alheia aos dois. E ainda se tinha o sequestro da filha do presidente. Toda nossa civilização estava afogada em sua própria mentalidade corrupta. Havia frieza no toque de mão; eram grandiosos vazios que se tocavam mas não se preenchiam.
Daquela varanda do nono andar, Eva suspirou e olhou as ruas. E, da cozinha, Jon olhava para ela, mutilando aquela distância que os separavam espiritualmente. Eva era o que Jon chamava de “problema maior”, pois nunca demonstrava nenhum tipo de sofrimento interno, Eva estava sempre bem, alegre. E, de uma forma ou de outra, isso significava algo ruim, porque ou ela estaria completamente fora de si ou Eva teria um íntimo inteiramente estragado por fracassos e decepções.

– Vou pegar uma coisa – ele disse, da cozinha –, mas não quero que você se assuste.

“Não se assuste” é o sinal verde para tremer de medo, ela pensou, mas manteve-se no lugar. Tentou espiá-lo quando ele começou a remexer as gavetas e os livros e discos e dentro da caixa da guitarra.

Jon voltou à varanda com uma pequena cápsula de remédio, trouxe consigo o café e acendeu um cigarro.

– O que é isso? – ela o perguntou.

Ele não a respondeu. Apenas despejou o pó branco sobre a mesa.

– Você não precisa fazer nada – ele disse, – mas eu preciso.
– Um vício para esconder vários outros, Jon?
– A consciência é subestimada. Você não sabe, mas estar fora de si é a maior benção do nosso século.
– Aposto que as pessoas que te amam não iriam pensar assim.
– Bom, elas não estão aqui agora.
– Eu estou.
– Oh, por favor…

As pessoas estavam sempre criando um subterfúgio para a realidade mas nunca confessavam; estavam todas loucas para sentir uma chama qualquer que acendesse a esperança de dias menos obsoletos. E protestavam e exageravam em tudo, absolutamente tudo. Todos os dias se via um novo motivo para protestar e se colocar contra a ideologia de terceiros.

– Não é um vício se eu não sinto a necessidade de usar – ele continuou –, e nem um problema se sou inofensivo.

Preparou quatro linhas sobre a mesa e as cheirou, revezando as narinas. Levantou-se e foi para o quarto. Trocou a música no rádio. Agora, podia sentir a música o envolvendo. Apagou as luzes. Dali, olhou para Eva na varanda, sentada no sofá e com os cotovelos apoiados nos joelhos, encarando o que restava do pó branco.

Por muito tempo, Jon só havia visto coisas desinteressantes e monótonas, mas viu em Eva – só de observar sua silhueta – a lascívia que racharia crânios em todo o mundo, de trópicos em trópicos, fazendo do mundo um peão à medida que descia. Começou a dançar ao som da música e acenou para Eva.

– Se não faz mal, também quero um pouco – ela disse, passando pela cozinha, trazendo o restante da cocaína de Jon.

Jon sorriu e despejou o restante sobre a escrivaninha. Talvez duas gramas para cada.

Era fácil se envolver e fingir que tudo voltaria a ser como antes, assassinando as estatísticas. Estão todos sobrecarregados com desejos fúteis e passeando com falsos sonhos. Jon carregava suas armas. Linhas e mais linhas. Era divertido se fingir de aborrecido e autoconfiante e cheirá-las como se dominasse seu próprio destino. Sentia-se um nada, mas se fosse realmente um nada, um zero à esquerda, seria o melhor nada dentre todos os outros; escreveriam músicas sobre ele, fariam livros, filmes sobre sua vida.

Jon pegou-a em seu colo, segurando pelas coxas e a beijou. Apalpou aquelas coxas macias e sentiu o gosto de café na hora do beijo. Eva se esfregava como uma cobra na cintura de Jon, envolvendo sua presa.

Ao acordar, Jon beijou a boca de Eva e foi ao banheiro. Apoiou-se na pia. Saiu muito sangue ao assoar o nariz. Ainda podia sentir o gosto amargo descendo a garganta. Não queria encarar a manhã lá fora. Trocou de roupas e foi tirar o lixo.