Quem é familiarizado com a carreira do xamã Carlos Santana já deve ter ouvido algo sobre o tom universal. A música é um ponto cruz que se consolida com a conexão de pessoas, o ponto primordial do tom universal.
Reunir corpos, sincronizar mentes e elevar todas para um grau de virtuosismo ainda não conhecido. Santana foi um dos primeiros a mergulhar nessa questão de transformar homem e instrumento em apenas um corpo, mas todo guitarrista que se preze conhece essa nota, esse momento transcendental.
Aliás, creio que é praticamente um pleonasmo salientar que David Gilmour conhece essa experiência com absoluta profundidade, pois além de eternizar dezenas de solos sublimes, o britânico parece parar o tempo a cada vez que torce as cordas.
O domínio técnico é brilhante, mas o sentimento… Gilmour possui um feeling incandescente, uma classe aristocrática e um bom gosto majestoso. Elementos que se fundem em prol de um tom que arrebata estádios em apenas 10 segundos.
Utilizando nada mais nada menos do que um único bend. O tom universal, passagem que mesmo não sabendo definir com exatidão, com certeza fez escala no segundo show do Mr. Fender em São Paulo. Evento cósmico que desafiou as profundezas do infinito, e que compreendeu 3 horas, entre o primeiro bend da noite com ”5.A.M” e o último solo desta apoteótica dose de ar fresco, ao som da elementar ”Comfortably Numb”.
Quem não conhece o Gilmour (deveria ser preso), mas enfim. Quem nunca viu uma foto desse senhor de 69 anos, ao vê-lo andando pelas ruas de Londres, deve pensar: ”olha lá, o velhinho indo pra casa”. De fato, o rosto de um dos maiores mártires da música, engana, ele realmente parece frágil, mas depois que ele pega a Strato, ai meu rapaz, ele se torna o psicanalista da sua alma.
Durante 3 horas as mais de 45 mil pessoas que estavam no recinto subiram aos céus. Foram elevadas justamente por esse ”velhinho frágil” que parece brincar com as notas com a mesma destreza com que o mago das luzes, Marc Brickman, aquarelou as cores que fizeram o plano de fundo dessa imersão progressiva.
Com uma banda fantástica, um set list muito bem intercalado e ainda numa noite inspiradíssima, David Gilmour comandou um show soberbo. Dividido em 2 sets (acredite, não por acaso), o afável senhor começou com ”5.A.M”, seguiu com ”Rattle That Lock”, e fechou a primeira trinca do show com ”Faces Of Stone”, um dos singles do novo trabalho lançado no dia 18 de setembro de 2015.
A tensão na plateia poderia ser cortada com uma faca. A cada segundo as pessoas se encontravam estáticas, perplexas e estarrecidas com um show que antes mesmo da terceira música, já era uma demonstração aquém de nosso entendimento.
No meio dessas 45 mil pessoas me senti honrado em estar ali. Feliz como um fã de LP’s num sebo, vivi algumas horas no paraíso, enquanto ouvia o melhor solista de todos os tempos. A cada nota parecia que David emulava um feixe de luzes no pôr do sol da Normandia.
O estádio pulsava, se arrepiava a cada faixa, e colocava a mão no peito para cantar os hinos. O primeiro deles foi ”Wish You Here”, e a resposta da plateia foi tão estonteante que até David elogiou a performance de um público que ovacionava um ícone sempre que possível, aos berros de: ”Olê-olê-olê-olê: Gimour, Gilmour”
Foi fantástico vê-lo voando baixo com o violão, acariciando a guitarra e colocando o estádio de joelhos com uma lap steel apaixonante em ”High Hopes”, tema que encerrou o primeiro set do show, e um dos sons que encorparam as linhas de guitarra em ”The Division Bell” (1994).
Teve espaço pra tudo e mais uma tonelada de sonhos com mais faixas de ”Rattle That Lock” (como ”A Boat Lies Waiting” e ”In Any Tongue”), takes do fantástico ”On An Island” como ”The Blue” e a faixa título dessa obra prima lançada em 2006, bem como uma ode aos clássicos que fazem o mundo girar.
Aliás, creio que o impacto de supremas composições como ”Us And Them”, onde a dupla de backing vocals de David (Bryan Chambers e Lucita Jules) emulou a beleza dos cantos gregorianos foi tanta, que o nosso globo terrestre ameaçou até girar para o lado errado, contrariando a translação das moedas do troco de ”Money”, tema que muito provavelmente instaurou toda essa confusão.
Aliás, foi exatamente em ”Money” que o brilhantismo da banda de apoio de Gilmour alcançou um dos picos da noite. Os grandes mestres fazem questão de tocar com os melhores, e é justamente por isso que nomes como Phil Manzanera, Guy Pratt e Steve DiStanislao estão na estrada com David.
Só que o que poucas pessoas sabiam, é que o nosso país estava influenciando esta belíssima jam, e não, não foi só por sediar alguns shows. No saxofone, o curitibano João Mello, mostrou uma classe no Jazz de seu metal que foi digna do mais alto padrão de nobreza sonora.
Sempre que o jovem de 20 anos fez alguma intervenção no som, o resultado foi magnífico, cheio de sentimento e deveras oportuno. A calma e o controle que esse menino demonstrava era notável, nem parecia que ele estava tocando para um estádio lotado, tampouco substituindo o gigante Theo Travis.
E depois de uma pausa de 20 minutos, que mais do que um descanso para a banda, foi um momento para que os presentes assimilassem tudo que tinha acontecido, Gilmour & Cia retornaram afiados para o segundo set, mostrando os requintes psicodélicos de um dos singles mais importantes da história do Pink Floyd, com a lisérgica e explosiva ”Astronomy Domine”.
Aliás, o meteoro Syd Barrett foi lembrado em duas oportunidades, uma com o já citado single e outra com o mítico solo de ”Shine On You Crazy Diamond”. Foi assim que Gilmour desconcertou cada um dos 45 mil pagantes, com a grandeza de um filósofo que comprova sua tese sem aumentar o tom de voz.
João Mello seguia no topo de seu jogo, pegando a viola, voltando para o sax e equilibrando dois metais sob o pescoço, como num cosplay de Rahsaan Roland Kirk. A sintonia estava beirando a perfeição, e ao som de temas como ”Fat Old Sun”, ”Today” e ”Run Like Hell”, a conexão e a profundidade da música eram maiores do que as areias do tempo e mais fortes do que o elo das gerações presentes nessa história.
Mais do que tocar guitarra, ouvir e ver esse marco zero é conseguir olhar para dentro de si mesmo, enquanto apenas observamos o reflexo de um gênio que é capaz de atingir sua alma com apenas um bend. Eis aqui um retrato de um cidadão que a cada vez que toca não busca satisfazer ninguém, sua música é um mergulho na mais cristalina das águas, uma aula de autoconhecimento e afirmação, dentro dele e claro, de nós mesmos.
Foi com sons surpreendentes, como ”Fat Old Sun” (”Atom Heart Mother” – 1970), ”Sorrow” (”A Momentary Lapse Of Reason” – 1987) e ”Run Like Hell” (The Wall – 1979), que o pontual guitarrista colocou seus ouvintes no bolso.
E vou mais além, se pudesse resumir essa noite numa faixa, não iria logo de cara para as fundamentais que foram selecionadas para o Bis. É claro que ouvir ”Time”, ”Breathe (reprise)” e observar o encerramento desse grandioso momento, com uma das versões mais inspiradas de ”Comfortably Numb”, foi lindo, mas o que fica é a energia das texturas de ”The Girl In The Yellow Dress”.
Esse show foi o retrato do mais puro requinte. Um desenho intensamente detalhado, mas que com uma banda desse porte, foi feito com a mesma simplicidade dos rabiscos de uma criança. O sax desfilou com leveza, as teclas sorriam com o canto da boca e o baixo mostrou com quantos discos do Ron Carter é possível captar esse clima de Village Vanguard.
Só o David Gilmour mesmo pra fazer um show pra 45 mil pessoas se tornar intimista! E para quem duvida de todo o ocorrido nesta noite celestial:
When lighting genius Marc Brickman says of last night’s concert “that was David’s best concert ever” you know that…
Posted by David Gilmour on Domingo, 13 de dezembro de 2015
Set List – 1ª parte
1- 5 A.M.
2- Rattle That Lock
3- Faces of Stone
4- Wish You Were Here
5- A Boat Lies Waiting
6- The Blue
7- Money
8- Us and Them
9- In Any Tongue
10- High Hopes
Set List – 2ª parte
11- Astronomy Domine
12- Shine On You Crazy Diamond
13- Fat Old Sun
14- On an Island
15- The Girl in the Yellow Dress
16- Today
17- Sorrow
18- Run Like Hell
Set List – Bis
19- Time
20- Breathe (Reprise)
21- Comfortably Numb