Existe um momento na vida que é preciso parar e enxergar. Enxergar o mundo. As pessoas. Enxergar o que não vemos no dia a dia. Enxergar a menina que bate no vidro do seu carro, quando fecha o sinal e você, invariavelmente, finge que não vê. Enxergar os velhinhos dos comerciais que escondem por trás do sorriso e olhos azuis uma história de guerra. Chega um momento que é preciso olhar para frente e para os lados. Levantar a cabeça e perceber. Notar. Sentir. Tornar palpável quem sempre foi invisível.

É o que fez e faz Eliane Brum, em “A Vida Que Ninguém Vê” (2006), a assustadora história da realidade. O livro é uma reunião de crônicas – que classifico também, no meu atrevimento de estudante de jornalismo, como reportagens – publicadas no jornal Zero Hora (Porto Alegre) em uma coluna semanal sobre as vidas que passam por nós muito devagar, enquanto, correndo, nós não conseguimos alcançá-las. Sequer percebê-las.

Com prefácio de Marcelo Rech e posfácio de Ricardo Kotscho, o livro me leva a vários questionamentos e também conclusões, muitas delas até ligadas a teimosia do jornalismo de se ater dia-a-dia ao texto truncado da pirâmide invertida. É um oásis de aprendizagem, um livro de entrelinhas, como o jornalismo literário. Um livro que torna viva a profissão e respirando sem aparelhos. Mas que faz morrer, a cada ponto final, a vida de pessoas simples e, por serem simples, serem protagonistas de um mundo de papeis secundários.

As primeiras páginas contam a história de Adail, um carregador de malas do Aeroporto Salgado Filho, que nunca voou. O sonho de Adail é voar e já dá pra perceber, de início, que o livro é muito mais sobre o que se sonha de olhos abertos do que os sonhos de uma noite de sono. Mesclada a história de Adail, aparece a crônica sobre Antônio Antunes, sua família e o momento do enterro de um dos filhos que morreu ainda no ventre da mãe. “Não há nada mais triste do que enterro de pobre. Porque o pobre começa a ser enterrado em vida”, escreveu Eliane.

E seria bonito se o retorno dessas duas histórias não fosse, uma delas, trágica. Antônio volta a enterrar um familiar. A esposa, depois de ser assassinada pela saúde pública, se cobre de terra aos 26 anos e o pobre, que descobriu a sua sina, abaixa mais uma vez a cabeça, chora mais uma morte, recomeça mais uma vez. Adail, para desfibrilar o leitor, enfim, voa – relembrando, inclusive, de uma maneira menos dolorosa e com final feliz, a história de “O Pagador de Promessas”. Ele voa até São Paulo e paga a sua promessa para Nossa Senhora Aparecida. Adail esquece o saguão do aeroporto para viver nas nuvens por algumas horas. Felicidade, para essa gente – e que deveria ser para nós também – é o vento batendo no rosto sem preocupação.

Eliane-Brum-A-Vida-Que-Ninguem-Ve-Capa

O jornalismo está vivo

É com grande prazer que eu digo, sem medo de errar, estamos salvos. Eliane Brum foi capaz – e se ela foi, todos o são – de transformar assuntos factuais em belas crônicas-reportagens-literárias, que poderiam render de uma simples coluna a chamada de capa do jornal. A mais marcante foi intitulada de “Sinal Fechado para Camila”, quando morre a menina que pede trocados no sinal.

Não é de hoje que ela e outros profissionais vêm tentando dedilhar a literatura no jornalismo. O livro “A vida que ninguém vê”, por exemplo, reúne crônicas de 1999, época em que o jornalismo, o impresso principalmente, ainda não se preocupava tanto com a sua sobrevida. Xico Sá é um dos mestres que, na sua crença infinita, coloca as fichas que têm na literatura. “Se há salvação, eu acho que seria esse o caminho”, me enche de esperança, o grande Xico.