Na última sexta-feira (18), o Brasil perdeu um de seus grandes narradores, o escritor baiano João Ubaldo Ribeiro. A perda – como de resto todas as perdas neste país carente de referência culturais sólidas – é lastimável porque não há, acredito, e nunca houve qualquer outro escritor que tivesse conseguido construir um monumento literário sobre nossa nação – o próprio nascimento da nação. Muitos foram os escritores que abordaram com exatidão e escrutínio social os elementos fundadores de nossa cultura, mas seria preciso juntar António Vieira, José de Alencar, Machado de Assis, Euclides da Cunha, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Erico Verissimo, Jorge Amado, Mário Palmério e Guimarães Rosa para termos uma visão global e definitiva desse elemento designado “o brasileiro”. Pois foi o escritor João Ubaldo Ribeiro que em único livro conseguiu não só construir literariamente o nascimento do caráter brasileiro, como definir as raízes sociais desta terra chamada Brasil. Este livro é Viva o povo brasileiro, obra ímpar em nossas letras.

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Considerado um clássico da literatura brasileira, escrito e premiado no início dos anos 1980, a obra máxima de João Ubaldo Ribeiro Viva o povo brasileiro é um tratado sobre a nacionalidade dos povos e das pessoas que formaram este país. Ao percorrer quase 500 anos da história do Brasil (a primeira cena remonta a invasão do Nordeste pelos holandeses), o livro busca as raízes de nossas maiores virtudes da mesma maneira que descreve, com refinado grado e bom humor, o nascedouro de nossos maiores escândalos éticos; de nossas imperfeições morais; de notáveis fatos e enriquecimentos ilícitos; de conveniências sociais acordadas, de megalômanos acordos políticos sombrios na calada da noite; de movimentos sociais revolucionários e de megaeventos históricos irrelevantes; ou ainda, de onde vem nossa capacidade de Capa Viva o povo Brasileiro.aiuso indevido de recursos naturais e da apropriação indébita da coisa pública; e por outro lado, do registro de como o sincretismo religioso no Brasil foi efetivamente uma realidade entre nós; por fim, e como não poderia deixar de faltar na obra do escritor baiano, um pouco da história miúda da perversidade sexual como um estatuto livre entre dominantes e dominadores neste país feito de desigualdades. Na obra, João Ubaldo ainda nos explica em linhas e tons literários (e, repito, com muito bom humor), um pouco do jeitinho brasileiro e muito, bastante mesmo, das perturbações psicológicas de comportamentos desviantes que conduziram não só os rumos deste país, mas também criaram muitas das barbaridades e indecências políticas observadas no Brasil de hoje. Enfim, uma aula de história, um testamento sobre a nossa nacionalidade, um retrato do povo brasileiro.

João Ubaldo Ribeiro nasceu na Ilha de Itaparica, no Estado da Bahia, cenário de boa parte da longa narrativa contida em Viva o povo brasileiro. Estreou na literatura aos 21 anos com o livro Setembro não tem sentido (1968), e em seguida publicou aquele que seria seu primeiro grande livro, o clássico Sargento Getúlio (1971), com o qual já ganhou o maior prêmio literário nacional, o Prêmio Jabuti, e que conta a história de um sargento que enlouquece tentando cumprir uma missão num país que mudou ele ainda não sabe. Anos depois, lançaria Viva o povo brasileiro (1984), tentativa bem sucedida de narrar a História do Brasil a partir de relações familiares, formas de governança política, alternâncias de modo de produção e de ciclos econômicos; do registro de manifestações populares até transformações sociais; de percepção das disposições étnicos-culturais que, dispersas pelo território, formam a essência do povo brasileiro; por fim, anotações sobre o cotidiano que explicam e expõem a confluência de raças, nessa vivência histórica por vezes mansa, por vezes tensa entre as distintas camadas de nossa sociedade, historicamente desigual. A obra de João Ubaldo Ribeiro, composta por excelentes livros (Vencecavalo e outro povo, Já podeis da pátria filho, Vila Real, O sorriso do Lagarto e o já citado Sargento Getúlio, entre outros), tem seu ponto alto em Viva o povo brasileiro. A obra é considerada como uma espécie de sedimento literário bastante firme dentre as tentativas de se criar uma narrativa épica abrangente que explicasse o Brasil.  De todos os autores que tentaram isso, João Ubaldo foi aquele que num único compêndio conseguiu registrar as distâncias sociais entre os grupos e os desdobramentos políticos de nossa nação, chegando à representação literária perfeita de um povo que hoje possui uma mentalidade coletiva única: a de ser brasileiro.

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Em Viva o povo brasileiro, encontramos não apenas uma arquitetura literária de grande porte, aqui digna de registro; temos senão o registro minucioso da própria dinâmica de criação e transformação de uma nação. Se a narrativa básica que sustenta toda essa obra gigantesca são os laços familiares e as relações entre as classe sociais, do Brasil Colonial aos dias de hoje, do capitalismo financeiro, é importante frisar que o mais importante é que o ser humano em João Ubaldo Ribeiro é, acima de tudo, um sujeito histórico universal. A essência do que o escritor baiano escreveu nesta obra está, no limite, em cada habitante deste país – quiçá do mundo. Uma grande perda a lamentarmos.

Boa leitura.