De Vinicius de Moraes a Barack Obama: conheça o obrigatório Orfeu do Carnaval

Esse clássico do cinema brasileiro raramente passa sem ser percebido. Isso porque, apesar de feito em 1959, o filme permanece atual e bate fundo em uma realidade ainda presente nas grandes cidades brasileiras: as favelas. O diretor é francês, Marcel Camus, mas o olhar brasileiro se reflete tanto na história e paisagem quanto na trilha sonora, que tem nomes de peso como Tom Jobim, Vinicius de Moraes e Luiz Bonfá.

Baseado na peça “Orfeu da Conceição”, de Vinicius, o filme tem uma primeira inspiração: o mito de Orfeu e Eurídice. A peça é também um marco histórico na música brasileira, já que registra a primeira união musical de dois gênios da trilha sonora nacional, Vinicius e Tom, que musicou todo o espetáculo. Na união de musicalidade e poesia que define o estilo dos artistas, vemos transposta aos palcos a trágica lenda grega, mas se passando em um feriado de Carnaval em uma favela carioca.

Orfeu da Conceição - Vinicius de Moraes

A lenda grega conta que Orfeu era o poeta mais talentoso que já viveu. Ele se apaixona e se casa com Eurídice, cuja beleza é tamanha que acaba atraindo um apicultor, que a perseguiu. Tentando fugir, Eurídice pisa em uma serpente que a mata. A tristeza imensa de Orfeu o fez levar sua lira ao mundo subterrâneo na tentativa de resgatar sua amada. Com sua poesia e talento, ele consegue convencer Hades a lhe devolver Eurídice, sob a condição que não a olhe até deixarem o mundo dos mortos. Quase na saída do túnel, Orfeu vira-se para assegurar-se de que Eurídice o seguia, mas conforme a promessa, ela é tomada novamente por Hades e os dois são separados. Por fim, Orfeu acaba morrendo também de tristeza e acaba por unir-se a sua amada.

Na obra de Vinicius de Moraes e no filme de 1959, a história fala de Orfeu da Conceição, um sambista que vive no morro. Ele se apaixona por Eurídice, que vem fugida do sertão nordestino, mas esse amor desperta o ciúme e o desejo de vingança em Mira, ex-namorada de Orfeu. Ela, por sua vez, leva Aristeu, apaixonado por Eurídice, a matá-la. Na terça-feira de Carnaval, Orfeu desce para o Clube Os Maiorais do inferno para buscar Eurídice e tentar encontrá-la, mas ela está morta. Quando volta à favela, coberto de tristeza, é morto por Mira e outras mulheres.

Orfeu do Carnaval (2)

A trágica história é também um dos primeiros retratos da realidade do embrião que hoje conhecemos como os complexos de favelas do Rio de Janeiro. Nas telas de cinema, está estampada também a visão romântica do morro e sua realidade. Tudo isso tendo como pano de fundo uma das histórias de amor mais tristes da mitologia grega. A grande genialidade está em comparar a vida nas favelas com o cenário festivo grego e a mitologia da Grécia Antiga, sagrado e profano amalgamados em habitações clandestinas. A combinação é harmonizada pela musicalidade de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, que fez com que o filme ganhasse reconhecimento internacional.

Na lista de prêmios inclui-se uma Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira do ano seguinte, assim como o Globo de Ouro na categoria de melhor filme estrangeiro. A canção do filme atingiu também fama internacional, “Manhã de Carnaval” foi traduzida para “Mañana de Carnaval”, na América do Sul; “Chanson d’Orphée”, em francês; “Carnival”, na Itália; “Wala kif”, no Líbano; e “Shou bkhaf”, em árabe. A letra é de Antônio Maria e a música de Luiz Bonfá.

Orfeu do Carnaval Poster - Cartaz - Marcel Camus

Eis que, ao percorrer o mundo mostrando os contrastes da beleza natural carioca com a dura realidade de suas favelas, o filme acaba em cartaz em um cinema no centro de Nova Iorque. Ao folhear o jornal Village Voice, Ann Dunham, acompanhada de sua filha e em visita a seu filho mais velho na Universidade de Columbia, insiste com grande entusiasmo que fossem assistir ao filme, defendendo que era o primeiro filme estrangeiro que ela havia visto em sua vida. Nas palavras dela: “Quando vi o filme, achei que era a coisa mais bonita que já tinha visto”.

“Na metade do filme, decidi que havia visto o suficiente e virei para minha mãe para ver se ela estava pronta para ir embora. Mas seu rosto estava vidrado na tela. Naquele momento, senti-me como se tivesse olhado por uma janela para seu coração, o coração de sua juventude”, relata o filho em sua autobiografia “Dreams from my father”, de 1995. Esse filho era o jovem Barack Obama, que se tornaria anos depois, o primeiro presidente afrodescendente dos Estados Unidos.

Sua ligação com o Brasil, com Orfeu de Carnaval e com Vinicius de Moraes surge antes mesmo de seu nascimento e é possível, inclusive, dizer que esses foram alguns dos responsáveis por sua existência. Ann Dunham, com 17 anos, teve o contato com a tropicalidade contida nas imagens do filme brasileiro, estrelado somente por atores negros, e a partir dessa e de outras experiências passou a estudar antropologia na Universidade do Havaí. Em um curso de russo, ela conheceu Barack Hussein Obama (pai do então presidente americano), o primeiro estudante queniano na faculdade, por quem se apaixonou a partir dessa primeira influência.

O que Ann viu nas telas do filme é justamente a visão de um negro que fugia a suas próprias experiências. De um povo que, na vivência precária do morro e da favela, conseguia viver com lirismo e assumir papéis de heróis gregos. De uma beleza contida em lugares que sua imaginação não concebia e que até hoje surpreende os olhos de quem não conhece ou se aventura a entender seu interior. E, claro, romantizada pelos roteiros de cinema e pela idealização da história de amor.

Orfeu do Carnaval (3)

Uma nova versão do filme foi gravada em 1999 por Cacá Diegues, com trilha sonora de Caetano Veloso. A ideia do diretor não era realizar um remake do filme de 1959, mas uma adaptação da peça original de Vinicius de Moraes, atualizada para uma favela dos dias atuais e menos romantizada.

Se você quiser conhecer as obras ou mesmo revê-las, as produções podem ser encontradas até no Youtube, e vale a pena assisti-las em uma TV com acesso à internet, como essa. Em julho de 2014, outra adaptação foi anunciada, pela Broadway, a ser escrita por Lynn Nottage e dirigida por George C. Wolfe.

Os ecos do Orfeu Negro reverberam até hoje, um exemplo está também no vídeo da banda canadense Arcade Fire, para a música “Afterlife”, do álbum Reflektor, que usa imagens do filme de 1959.