A Apple entrou no jogo do streaming em 2019 com a pompa de quem tem bilhões em caixa e a ambição de conquistar um público que já se dividia entre Netflix, HBO e Amazon.
Seu cartão de visitas? The Morning Show, drama de bastidores estrelado por Jennifer Aniston e Reese Witherspoon, cada uma faturando cifras indecentes — cerca de 2 milhões de dólares por episódio.
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Prestígio era a palavra de ordem: um retrato ácido do jornalismo televisivo, inspirado no livro Top of the Morning, mas rapidamente adaptado para incluir o terremoto do movimento #MeToo após o escândalo Matt Lauer.
Na estreia, funcionou. O piloto trouxe peso, timing político e a sensação de que estávamos diante do “novo Mad Men da era do streaming”. Uma obra que mergulhava no assédio, na cultura do silêncio e nas engrenagens podres de um império midiático. Era sério, era atual, era caro.
Cinco anos depois, o que temos é uma montanha-russa de absurdos narrativos que transformaram esse suposto drama de prestígio em algo muito mais divertido — e muito menos coerente.
Do #MeToo ao espaço sideral
Entre as primeiras temporadas, The Morning Show parecia querer equilibrar relevância e entretenimento.
Mas bastou o mundo entrar em pandemia para que o roteiro chutasse o balde.
Alex Levy (Aniston) virou heroína nacional ao tossir em cadeia nacional durante uma transmissão gripada. Bradley Jackson (Witherspoon), que no início encarnava a repórter outsider e ética, se viu envolvida em romances improvisados, transmissões do Capitólio em chamas e, de repente, num foguete rumo ao espaço ao lado de um bilionário à la Elon Musk, vivido por Jon Hamm.

Se no início a série buscava ser um comentário social afiado, rapidamente abraçou a lógica do “e se?”.
E se a âncora tivesse um colapso ao vivo?
E se uma jornalista flagrasse o próprio irmão entre golpistas em Washington?
E se a emissora transmitisse um acidente de avião em tempo real?
Cada temporada parece escrita por roteiristas que apostam entre si quem consegue inventar o arco mais mirabolante.

CNN encontra Dynasty
Esse é o paradoxo fascinante: The Morning Show ainda insiste em se ancorar em eventos reais — pandemia, eleições, guerra da Ucrânia — mas trata tudo com o mesmo tom de novela de luxo. A série oscila entre discussões éticas sobre poder corporativo e cenas que poderiam ter saído de Dynasty ou Gossip Girl.
Os críticos perceberam rápido. O Guardian já chamou a série de “a mais ridícula da TV”. O Vulture falou em “sniffs of plot coke”. E o New Yorker foi certeiro ao definir a experiência de assistir como “desestabilizadora” — não dá para levar a sério, mas também não dá para desligar.

A estética do vício
E é aí que mora o segredo: The Morning Show vicia. Não pelo realismo, nem pela profundidade, mas pelo excesso.
É uma novela com orçamento astronômico, figurinos de revista e atrizes premiadas chorando com convicção em meio a roteiros que fariam vergonha numa oficina de dramaturgia.
Mas a série não pede desculpas por isso. Pelo contrário: escancara seu próprio luxo.
Os fãs comentam tanto sobre a cobertura política quanto sobre o apartamento de Alex, digno de reportagem da Architectural Digest.
É uma fantasia de poder, beleza e caos moral, embalada num ritmo frenético. Um “no-scroll show”, como definiu uma jornalista britânica: você não ousa olhar o celular porque pode perder a próxima virada absurda.

Entre prestígio e paródia
No fundo, The Morning Show acabou encontrando uma identidade improvável: não é o drama sério que prometia ser, mas também não é simples escapismo descartável.
É um espelho distorcido da era da superexposição, em que tragédia e espetáculo convivem lado a lado. Uma televisão sobre televisão, só que turbinada de exagero, estrelismo e roteiros que parecem criados em mesas de apostas.
Se fosse mais polida, talvez tivesse virado Succession. Mas aí seria só mais uma série “de prestígio”.
Ao abraçar o delírio, tornou-se algo único: um show que desafia a lógica e, ainda assim, mantém a audiência em crescimento.

A delícia do exagero
The Morning Show, apesar de alguns defeitos, é irresistível. Como uma montanha-russa mal planejada, cada curva parece prestes a descarrilar, e justamente por isso seguimos dentro do carrinho, rindo, chorando e pensando: “até onde eles vão?”.
Prestígio, seriedade e coerência ficaram pelo caminho. Mas em troca ganhamos um espetáculo vestido de drama corporativo.
No fim, The Morning Show não só comenta o jornalismo, mas também encarna a lógica do nosso tempo: tudo é notícia, tudo é entretenimento, tudo é espetáculo.
E quem consegue desligar a TV no meio disso?