Essa é a 1ª parte da série ‘A Era da Liquidez’, que discute a fundo sobre as principais reflexões, filosofias e ideias do polonês Zygmunt Bauman, um dos sociólogos mais intelectuais, inteligentes e precisos da atualidade.
A obra de Bauman é extremamente perspicaz na análise de problemas sociais que norteiam a experiência cotidiana do indivíduo contemporâneo, inserido na conjuntura de valor denominada de “Modernidade Líquida”.
O autor explora, cirurgicamente, alguns temas intrínsecos ao atual contexto social de liquidez. Comecemos então com o conceito fundamental de Zygmunt Bauman, a tal modernidade líquida.
A sociedade líquido-moderna
Vivemos numa era de liquidez, em que nada é feito para durar.
Esse é o argumento proposto por Bauman em seu livro sobre a modernidade líquida: uma época de fragmentação, de fragilidade, de incerteza e imprevisibilidade.
O processo de despersonalização do indivíduo imerso no oceano da pobreza existencial é a característica por excelência da ideia de modernidade líquida problematizada por Bauman. Toda a solidez da era anterior (modernidade clássica) sai de cena para dar espaço à lógica de consumo, da frugalidade, do gozo e da artificialidade.
“A vida na sociedade líquido-moderna é uma versão perniciosa da dança das cadeiras, jogada para valer. O verdadeiro prêmio nessa competição é a garantia (temporária) de ser excluído das fileiras dos destruídos e evitar ser jogado no lixo.”
De acordo com Bauman, os valores que a nossa cultura ocidental até então estabelecera como os mais nobres cada vez mais se diluem como a água que escorre de nossas mãos, sem que sejamos capazes de detê-la. Para ele, os valores não são mais o que pareciam ser, já que deixamos de acreditar em mecanismos culturais de produção de valores.
“Atualmente, há uma ênfase em eliminar as coisas, abandonando-as, livrando-se delas. É uma cultura de desengajamento, descontinuidade e esquecimento.”
A nova ordem social está sendo marcada pela violência, pelo medo e, principalmente, pela perda da confiança na coletividade social.
Tememos a proximidade do outro ao pensar que este traz consigo um espectro; uma sombra ameaçadora capaz de desestabilizar o frágil suporte de nossa estrutura familiar, profissional e social como um todo.
Na era da liquidez, o ser humano é desumanizado e adquire o estatuto de objeto; uma coisa a ser consumida para em seguida ser descartada.
O indivíduo líquido hoje é marcado pela angústia, pelo senso de que algo está errado. Há uma carência de esperança, pois no fundo, sente-se que tudo está fora do alcance.
Para Bauman, as sociedades foram individualizadas. Hoje, as pessoas agem de forma mais autônoma, mas em contrapartida demonstram menor capacidade para resolver problemas de forma coletiva, e assim a tendência é sempre culpar o outro por toda a desgraça da vida corriqueira.
Em se tratando de ideologia, existe uma confusão entre o conceito de pós-modernidade e modernidade líquida. A modernidade líquida não é um conceito sinônimo de pós-modernidade, mas sim um conceito aprimorado.
Para Bauman, não existe uma pós-modernidade (ou hipermodernidade como cunhou Gilles Lipovestsky), há sim uma continuação da modernidade clássica com regras e fundamentações diferentes: a modernidade líquida.
Bauman explica como surgiu essa sua designação de liquidez:
“Procurei um termo que não nos diria apenas o que essa condição deixou de ser, mas também que qualidade ela adquiriu que a distingue da modernidade clássica e, por conseguinte, exige uma nova caixa de ferramentas analíticas e uma nova agenda para estudos sociais e culturais. O termo “liquidez” é o que melhor se adequa ao meu propósito: o aspecto definidor de “liquidez”, a incapacidade de reter sua forma por muito tempo e sua propensão a mudar de forma sob a influência de mínimas, fracas e ligeiras pressões é o traço mais óbvio e, em minha opinião, a característica mais consequente de nossa atual condição sociocultural.”
Bem, numa sociedade em que a liquidez impera, nós podemos tentar viver de forma mais “sólida”?
Bauman diz que, se procurarmos solidez e durabilidade nesses tempos líquidos, cedo ou tarde descobriremos como são poderosas as chances que conspiram contra nós. Mesmo assim, ele diz, ainda poderíamos resistir ou ignorar tais chances adversas, mas isso exigiria muito mais esforço em nadarmos contra a corrente.
“As pessoas tendem a se orientar por aquilo que os outros ao seu redor fazem, desorientadas.”
As ações cotidianas, então, passam a ser norteadas pela imprevisibilidade, e a vida passa a ser, antes de tudo, um exercício de sobrevivência.
De forma extremamente evidente, Bauman nos apresenta a crueza da “vida líquida”, mas ao mesmo tempo, ele nos incentiva a batalhar contra essa atual crise de valores que está deteriorando as qualidades essenciais da humanidade contemporânea.
Caçadores e jardineiros
Bauman usa sua metáfora do caçador e do jardineiro para simbolizar a era pré-moderna e a atual era da liquidez.
Segundo Bauman, na era pré-moderna a presença humana adéqua-se à persona do jardineiro. O jardineiro tem uma visão progressista, de longo prazo, que envolve planejar tudo aquilo que se deseja antes de agir. O jardineiro sabe exatamente quais plantas devem ser plantadas e quais devem ser cortadas, e sabe que tudo depende de seu esforço e cuidados, não de uma força exterior.
Porém, na atual era da liquidez, Bauman diz, a metáfora do caçador melhor simboliza a presença humana. A principal tarefa do caçador é proteger seu território de qualquer ameaça ou interferência externa, com o intuito de preservar tudo aquilo que acredita fazer parte do equilíbrio natural. O caçador vê uma estabilidade funcional em cada elemento no mundo, e não se importa em explorar recursos e batalhar com outros se a circunstância assim exigir. O caçador percorre incansavelmente todo seu perímetro de ação, afim de certificar de que tudo está em total conformidade com seu meio. No mais, o caçador tem comportamento predatório, e sua vida é norteada basicamente por vigilância e competição.
Segundo Bauman, é do jardineiro que tendem a sair os mais fervorosos produtores de utopias (ilusões, fantasias). De acordo com ele, quando a utopia passa a ser deixada de lado na sociedade líquida, o caçador volta a tomar lugar do jardineiro e as regras fixas do equilíbrio da natureza voltam a produzir formas variadas, e a condição humana passa a ser novamente dominada por angústia e insegurança insustentáveis.
“Na era da liquidez, estamos agora, todos os caçadores, ou ditos caçadores, obrigados a agir como caçadores, sob pena de despejo da caça, se não de sermos relegados das fileiras do jogo. Não é de admirar, portanto, que, sempre que estamos a olhar a nosso redor, vemos a maioria dos outros caçadores quase sempre tão solitária quanto nós. Isso é o que chamamos de individualização.”
Jardineiros, pessoas que contemplam e valorizam a harmonia para além da barreira de seu jardim privado. Hoje em dia, tais jardineiros são cada vez mais difíceis de encontrar. Como ressalta Bauman, certamente não encontraremos muitos caçadores de hoje com interesse nisso, mas sim entretidos com suas ambições.
“O problema é que, uma vez tentada, a caça se transforma em compulsão, dependência e obsessão. Atingir uma lebre é um anticlímax que só se torna atraente com a perspectiva de uma nova caça, com a esperança de que essa caça será a mais deliciosa. Apanhar a lebre prenuncia o fim de todas as expectativas, salvo se outra caçada for planejada e imediatamente empreendida.”
Isso significa o fim da utopia?
De acordo com Bauman, estamos encaminhando sim para a total erradicação de jardineiros, considerando que numa sociedade de caçadores, a perspectiva de fim da caça não é tentadora, mas assustadora (uma vez que significa uma derrota pessoal).
Jardineiros, indivíduos progressistas e esperançosos, são raridade atualmente. Então, como fica a ideia de progresso na contemporaneidade?
“A ideia de progresso foi transferida: da ideia de melhoria partilhada para a de sobrevivência do indivíduo. O progresso é pensado não mais a partir do contexto de um desejo de corrida para a frente, mas em conexão com o esforço desesperado para se manter na corrida. O truque é manter o ritmo das ondas. Se não quiser afundar, mantenha-se surfando – e isso significa mudar o guarda-roupa, o mobiliário, o papel de parede, o olhar, os hábitos, em suma, você mesmo, quantas vezes puder.”
Referências bibliográficas:
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida.
BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida.
BITTENCOURT, Renato. A Estrutura Simbólica da Vida Líquida em Zygmunt Bauman.
Veja a entrevista abaixo, em que Bauman oferece mais esclarecimentos sobre essa atual fase de modernidade líquida: