A Era da Liquidez: Parte II (Tempos Líquidos)

Tempos líquidos

Essa é a parte II da série A Era da Liquidez’ que discute a fundo sobre as principais reflexões, filosofias e ideias do polonês Zygmunt Bauman, um dos sociólogos mais intelectuais, inteligentes e precisos da atualidade.

A obra de Bauman é extremamente perspicaz na análise de problemas sociais que norteiam a experiência cotidiana do indivíduo contemporâneo, inserido na conjuntura de valor denominada de “Modernidade Líquida”.

O autor explora, cirurgicamente, alguns temas intrínsecos ao atual contexto social de liquidez. Falemos mais sobre os atuais tempos líquidos.

Identidades e comunidades estéticas

No livro Tempos Líquidos, Bauman aprofunda os diálogos sobre a modernidade líquida nas questões sócio-políticas. Ele faz análises sobre a administração de espaços públicos nas grandes cidades, aborda a atual política do medo nos eixos urbanos, explora a relação entre identidade/comunidade e discute sobre o trabalho nessa era de liquidez.

Primeiramente ele fala sobre as comunidades, grupos que remetem à busca de uma convivência harmônica segundo regras de convívio. Para Bauman, esse conceito de comunidade foi ultrapassado.

Hoje, o que existe é uma versão compacta do “viver junto” que quase nunca se concretiza, gerando assim uma utopia que serve como ideal para a parte vulnerável da sociedade: as chamadas “comunidades estéticas”.

Segundo Bauman, as comunidades estéticas são ajuntamentos de pessoas com laços frouxos. Elas passam uma sensação de segurança, conforto, união e cumplicidade, mas que não são mais que momentos para aliviar o sufoco cotidiano de viver (são os clubes esportivos, os grupos étnicos, os coletivos artísticos, os sindicatos, etc).

“As minorias se investem do objetivo de fazer uma comunidade para se protegerem da realidade líquida.”

Só que, para alguém se estabelecer em comunidade, argumenta Bauman, antes é necessário que uma identidade pessoal seja criada e consolidada. No entanto, na atual era da liquidez as identidades perdem seu caráter e ficam cada vez mais superficiais ao serem constantemente “privatizadas”.

Bauman afirma que, hoje, as grandes cidades são formadas basicamente por inúmeras comunidades estéticas; grupos homogêneos de pessoas estranhas umas as outras que não tiveram nenhuma afinidade prévia, e provavelmente nunca terão. É como se cada cidadão usasse uma máscara pública que possibilita sua plena aceitação e participação coletiva, entretanto, sem haver a exposição de seu verdadeiro “eu”.

De acordo com ele, quando as relações sociais são mediadas por excessivo formalismo de regras e condutas autoconscientes, a comunidade desaba em sua essência vital, e cada indivíduo é convidado pela situação dramática do abandono a procurar um espaço social e cultural para se alojar. Ou seja, as comunidades estéticas de hoje servem como refúgios.

“É uma patologia do espaço público que resulta numa patologia política: o esvaziamento e a decadência da arte do diálogo e da negociação, e a substituição do engajamento e mútuo comprometimento pelas técnicas do desvio e evasão.”

As comunidades estéticas, ele diz, estimulam seus participantes a deteriorarem sua identidade, já que a exclusão é um risco de ser autêntico.

De fato, um dos sintomas mais perceptíveis da sociedade líquido-moderna em que vivemos é a intolerância da massa diante de tudo aquilo que se considera desvio de conduta ou que diverge dos padrões vigentes.

Todo comportamento que confronta nossos valores particulares torna-se digno do mais profundo desprezo, pois no fundo queremos ver estampado no outro um pouco daquilo que nós mesmos somos (ou queremos ser).

O que existe mesmo é a incapacidade de relacionarmos integralmente com o outro considerando toda sua diferença e singularidade.

“Tendemos sempre a valorar a figura do outro tal como ela se apresenta diante de nós e não nela mesma, decorrendo daí os preconceitos, as diversas expressões de intolerâncias, em suma, a incompreensão da subjetividade do outro, que, infelizmente, progressivamente perde a sua própria natureza humana, singular, única, para se tornar uma mera coisa com a qual nos relacionamos de maneira fria, egoísta e superficial.”

A sociedade líquido-moderna menospreza a liberdade de expressão individual; é uma sociedade despreparada para lidar com diversidade de perspectivas. O indivíduo líquido, por sua índole, cospe em todos aqueles que não se adaptam aos seus parâmetros fixados, uma vez que é muito mais fácil tentar modificar os outros do que a si mesmo.

Toda pessoa que destoa do padrão pré-estabelecido de conduta e valores é prontamente estigmatizado como o “diferente” e, portanto, como desagradável e potencial fonte de perigo para a manutenção de conforto existencial. Nesse ponto crítico (e revoltante) Bauman brinca:

“Diga-me quais são seus valores e lhe direi qual é sua identidade.”

A sociedade moderno-líquida suplica desesperadamente por aceitação, pois é uma sociedade extremamente pobre em autenticidade.

Essa forma de massificação da cultura visa, acima de tudo, eliminar as supostas características discrepantes entre os indivíduos, de modo que todos devem ser iguais e seguir a mesma moda. Com outras palavras, sair do padrão comportamental estabelecido é sinal de heresia social.

“Mudar de identidade implica em quebrar antigos preceitos. Trata-se de uma iniciativa privada que implica em assumir riscos, romper determinados vínculos e abdicar de certas obrigações.”

Bauman afirma que a individualidade caracterizada traz em si uma competitividade social mais hostil e agressiva, pois o indivíduo que depende somente de si mesmo para fazer suas escolhas é considerado potencial traidor das convicções grupais que regem a utópica sociedade cooperativa.

A política do medo (paranoia coletiva)

Nessa era da liquidez, a lógica excludente é a reinante e, segundo Bauman, a causa maior disso é o medo que motiva a busca paranoica por segurança.

“Ora, como a busca por segurança pode ser algo insano? De fato, parece uma ideia paradoxal, mas é tal comportamento que impera na nossa sociedade líquido-moderna. De tanto vislumbrarmos a criação de mecanismos infalíveis de defesa perante o outro, o desconhecido, acabamos por desenvolver afetos reativos, medos, ou seja, a própria insegurança pessoal diante do mundo que nos circunda. O mal pode estar oculto em qualquer lugar, não se pode confiar em ninguém.”

Exatamente como Bauman diz, uma nova estética de segurança modela todos os tipos de construção e impõe uma nova lógica de vigilância e distância. Se uma casa ou um prédio público não é ornado com grades nem possui câmeras de monitoramento, eles não nos inspiram a menor confiança. Somente nos sentimos seguros se somos vigiados a cada instante, e se um grande muro de concreto nos isola da realidade externa.

Permanece sempre uma atmosfera de insegurança no ar, pois, apesar de todos os recursos técnicos disponíveis para nos proteger, fica ainda essa tensão diante de ameaças externas (reais ou não).

Talvez, mesmo que permanecêssemos numa redoma hermeticamente fechada, a dúvida diante do desconhecido ainda nos afetaria. Inclusive, é justamente essa a ideia central da série Under The Dome, baseada em um livro do escritor americano Stephen King.

Enfim, nesse mundo marcado por altos índices de violência e pela necessidade de aceleração das nossas atividades cotidianas, Bauman ressalta, optamos por viver encerrados e supostamente protegidos por muros e grades pretensamente invioláveis.

“Os medos nos estimulam a assumir uma ação defensiva. Quando isso ocorre, a ação defensiva confere proximidade e tangibilidade ao medo. São nossas respostas que reclassificam as premonições sombrias como realidade diária, dando corpo à palavra. O medo agora se estabeleceu, saturando nossas rotinas cotidianas. É como se os nossos medos tivessem ganhado a capacidade de se autoperpetuar e se autofortalecer; como se tivessem adquirido um ímpeto próprio – e pudessem continuar crescendo com base unicamente nos seus próprios recursos.”

Essa política do medo enraizada na sociedade líquido-moderna se manifesta explicitamente no problema da violência nos eixos urbanos das grandes cidades, onde descobrimos que, embora tenhamos noção de que existem certos pontos geográficos cuja frequência deve ser evitada, em nenhum ponto da cidade estamos realmente seguros dos efeitos caóticos e destrutivos da discórdia humana.

A atual política do medo acaba formando uma sociedade obcecada, ou melhor, paranoica por evitar contato com estranhos, pois todos são potencialmente perigosos à primeira impressão. Segundo o autor, essa percepção terrorística faz as pessoas se manterem longe dos espaços públicos, o que as afasta de uma possível dinâmica social interativa.

De fato, espaços públicos nas grandes cidades inviabilizam o convívio, uma vez que são projetados para serem zonas de transição; locais de ir-e-vir nos quais as pessoas se amontoam indesejadamente. Contra isso, Bauman diz:

“É necessário retomar os espaços públicos, os retirando da iniciativa privada. Isso significa não só ocupar o espaço público, mas coletivizá-lo. Tomar para o coletivo todos os pedaços que fomentam ações coletivas. É necessária uma nova onda de engajamento e, para isso, também é necessária a construção de instituições políticas que “fabriquem” o engajamento.”

Bauman usa a Praça La Défense de Paris como exemplo para essa questão da convivência em espaços públicos.

“A praça é bonita, mas lhe falta muita hospitalidade. Nota-se a ausência de áreas arborizadas e de bancos para se sentar. Os grandes edifícios que estão em seu entorno parecem não fazer parte da praça, pois demonstram ser inacessíveis. A praça é apenas um mero ponto de ligação para as pessoas que trabalham na área e utilizam-se do metrô. Pode-se perceber que somente nos horários de entrada e saída do metrô que a praça se enche de pessoas, com apenas um propósito: pegar o trem mais rápido possível. Assim, nota-se que a praça tem um propósito no tempo e no espaço, mesmo sendo algo vazio e superficial.”

Bauman comenta que muitos outros lugares destinados a grandes massas carecem do mesmo propósito. Para ele, o governo é responsável por reviver os espaços públicos, mas o governo também possui seus próprios interesses que serão priorizados em caso de incompatibilidade com as necessidades da população:

“O modo como as pessoas individuais definem individualmente seus problemas individuais e os enfrentam com habilidade e recursos individuais é a única questão pública remanescente e o único objeto de interesse público.”

Então, qual seria o sentido dos interesses comuns se cada pessoa deseja antes satisfazer os seus próprios interesses? Bauman acredita que isso seja outro sintoma do quadro de individualismo exacerbado na era da liquidez:

“O indivíduo é o pior inimigo do cidadão. O cidadão é uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar através do bem-estar da cidade, enquanto que o indivíduo tende a ser morno, cético ou prudente em relação à causa comum.”

Realmente, ninguém se importa com o outro mais do que consigo mesmo. Para Bauman, existe hoje um grave conflito ideológico que faz o orgulho individual prevalecer à lealdade.

“No mundo líquido-moderno, a lealdade é motivo de vergonha, não de orgulho.”

Além de defender a ideia da reativação de espaços públicos em prol das comunidades, Bauman também luta pelo resgate da ideia nuclear de família que, na atual era da liquidez, está se tornando também ultrapassada.

“Antes, a interação familiar era física. Agora, cada qual pega a sua comida, senta-se na frente do computador e come. O ser humano de hoje passa sete horas e meia diante de algum tipo de tela.”

Trabalho líquido

Vivemos em pleno sistema capitalista. No capitalismo, existe a mentalidade primordial que prega os interesses sociais atrelados à acumulação de capital e aos confortos que isso proporciona. Para esse propósito, é claro, o trabalho se faz estritamente necessário, considerando a velha máxima do “tudo tem seu preço”, ou “nada vem de graça”.

Na atual era da liquidez, o capitalismo é um sistema ainda mais inexpugnável. A fim de mantermos um padrão de vida minimamente qualificado, o preço a ser pago é exorbitante: a contínua dedicação ao mundo do trabalho que, agressivamente, rompe nossas esferas ambientais.

Embora vivamos nessa condição desgastante que exige sacrifícios pessoais em prol do sucesso profissional, nós continuamos brigando para manter esse sistema em funcionamento, talvez para dar sentido aos nossos projetos existenciais e aspirações pessoais de felicidade.

Essa felicidade, dependente de um esforço doentio, também já se tornou frugal, como constata Bauman:

“O trabalho era um esforço coletivo em que cada membro da espécie humana tinha que participar. Era uma condição natural. No mundo pós-moderno, entretanto, as coisas são diferentes, pois o trabalho é visto como algo transitório e inconstante: o trabalho possui, agora, uma significação estética.”

No capitalismo, as pessoas não são totalmente livres para respeitar suas mudanças pessoais de prioridade. Há conflitos inevitáveis entre vida social/profissional toda vez que buscamos gerenciar nosso tempo.

Em Vida Líquida, Bauman faz algumas críticas em relação ao atual valor agregado do trabalho. Antes, o valor do trabalho era puramente creditado pelo esforço e dedicação investidos, ou seja, valorizava-se mais a ação do que os resultados. No entanto, hoje em dia isso se inverteu: o valor do trabalho é diretamente associado ao sucesso, já que pessoas improdutivas (aquelas que não geram números) são recursos obsoletos para as organizações e, portanto, descartáveis.

Atualmente, o real valor que a sociedade materialista credita ao trabalho advém do sucesso, que só pode ser medido por lucro (em forma de dinheiro). Enfim, pouco interessa se os fins justificam os meios: o importante é terminar os períodos operativos sem prejuízo.

Assim, trabalhadores de hoje são identificados (reconhecidos) por números, o que se encaixa no diagnóstico de Bauman de que, na sociedade líquido-moderna, trabalha-se por notoriedade, não por realização.

De uma forma geral, as atuais relações profissionais, da mesma forma que as sociais, estão cada vez mais fragilizadas e desvirtuadas. E o resultado, segundo Bauman, é sempre o mesmo: carência de empatia, inconsistência e falta de comprometimento.

“No fundo, o trabalho na modernidade líquida apenas condensa as incertezas quanto ao futuro, estabelecendo a insegurança nas relações e a falta de garantias entre as partes. No mundo ninguém se sente suficientemente seguro ou amparado, ou seja, a flexibilidade é o termo que rege os novos tempos. Assim, a satisfação instantânea do sucesso é perseguida, ao contrário do adiamento da mesma, uma oportunidade não aproveitada é uma oportunidade perdida. Não obstante, a satisfação instantânea é a única maneira de sufocar o sentimento de insegurança, recolocada aqui como um subterfúgio.”


Referências bibliográficas:

BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos.

BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas.

BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida.

BITTENCOURT, Renato. A Estrutura Simbólica da Vida Líquida em Zygmunt Bauman.