As costas de Jack estavam ardendo, derretendo. Seu couro se uniria ao da poltrona. O sol se fazia mais presente do que nunca.

Gabe, no volante, tirou um óculos de sol da gaveta do painel. Ligou o rádio.

– Você disse que pega carona todos os dias? – ele perguntou ao Jack.

– É – ele respondeu –, todos os dias. Não é um caminho muito longo, você sabe. Eu poderia ir a pé. Eu poderia ir de ônibus. Mas dou sempre a sorte de arrumar uma carona logo que saio da relojoaria.

– Todos os dias?

– Todos os dias.

– O que você faz?

– Você conhece a relojoaria no centro? Se você tem um relógio que não funciona, ou uma pulseira que arrebentou, ou um alicate de unha pra amolar, você vai me ver. Entendeu?

– Sei onde é.

Jack nunca tinha andando num caminhão daqueles antes. Era grande e barulhento e lento naquele trânsito da cidade. As ruas estreitas e cheias de gente, andando de um lado para o outro, atravessando na sua frente, gritando, com suas sacolas de compras e maletas. Loucura.

Já eram quase uma e meia da tarde e Jack ainda estava naquele caminhão. Um grupo de rock arrebentando na rádio.

– O trânsito tá foda hoje, amigo – resmungou Gabe.

– Só esta. Eu costumo estar em casa às… – ele consultava o relógio – … Bom, eu deveria ter chagado há uns dez minutos.

– As caronas costumam te deixar em frente de casa?

– Não. Eu desço no acostamento e entro na rua dos bancos. Ando cinco minutos e pronto: lá vejo as luzes acesas da varanda e o cachorro preso na corrente.

– A patroa cozinhando?…

– Não, não, eu moro sozinho.

– O que houve? O que aconteceu com sua patroa? Você já teve uma patroa, né?

– Sim, mas ela morreu.

– Me desculpe, cara.

– É, essas coisas acontecem. Acho que ninguém pode passar muito tempo com a mesma pessoa. Melhor um morrer do que um matar o outro.

– E filhos?

– Um. Mora fora do país.

– Hum… Deve ser um garoto inteligente. É bom, o seu garoto?

– Não sei. Ele foi embora um dia e nunca mais o vi. Recebi uma carta, e ele dizia que estava bem, não precisaria que eu fosse encontrá-lo.

Jack usava um macacão pesadão. O cinza estava desbotado e sujo de óleo. Ele tinha uma espécie de bolsa, uma mochila. Precisava aparar bigode e costeleta.

Passaram uns cinco minutos sem que ninguém dissesse nada. Jack olhou para Gabe. Este era um sujeito forte, típico caminhoneiro. Devia ter uns quarenta anos.

– Você viaja muito nesse caminhão? – perguntou Jack.

– Durante a semana eu entrego essas chapas de granito para as empresas aqui da redondeza. Eles me pagam o frete. Mas não é o suficiente. O caminhão é meu, eu tenho todos os gastos com gasolina, manutenção, impostos, você sabe.

– Sei.

– Então a cada quinze dias, se tudo correr bem, eu viajo três mil quilômetros e faço um frete especial pra essa outra empresa. Vou na quinta, carrego o caminhão, almoço lá, durmo lá, e volto no domingo com o caminhão carregado com as novas chapas.

– Eles vão te sugando de qualquer maneira…

– Ninguém fica sadio por mais que trinta anos nessa vida.

Faltava pouco para o destino de Jack. Ele tirou um maço de cigarros do bolso do macacão.

– Você tem um isqueiro por aqui?

Ele ia procurando na porta, no painel, abrindo o porta-luvas…

– MAS QUE PORRA?

Gabe assustou-se com o grito e quase perdeu a direção do caminhão.

Jack se encontrou pela primeira vez com aquele revolver sujo de sangue e talvez uns dez mil em dinheiro. E seu coração quase parou quando viu o carro avançando pela calçada. É, seu coração quase desceu no pit stop.

Gabe pôs o ponto morto e parou ali mesmo.

– Que porra você está fazendo? – ele gritou.

– Que porra VOCÊ está fazendo, com essa porra aqui? – gritou Jack.

Gabe retomou a primeira marcha e voltou para a estrada. Olhou para os lados e não vinha ninguém. Tudo em paz de novo. Ambos ficaram em silêncio. Jack suava limpava as mãos úmidas no macacão. Depois, limpava o suor do rosto com as mãos.

– Olhe só, cara, eu não queria que você tivesse visto isso – disse Gabe.

– “Isto”? Isto é uma porra de uma arma suja de sangue!

Gabe não respondeu.

– É o seguinte, Jack – ele disse –, você vai ter que me desculpar, mas não tem outro jeito.

– Jeito de quê? Do que você tá falando?

– Da arma! Você não devia ter achado a arma. Você podia ter ficado quieto aí, eu te deixaria onde quer que você tem de ficar, e você iria pra casa. Você podia ter evitado isso tudo, cara.

– Como eu ia saber que tinha uma porra de uma arma ali? Eu estava procurando um maldito isqueiro.

O cigarro ainda estava em seus dedos. Apagado. Sujo de suor.

Era só uma tarde quente. Gabe só queria tomar uma cerveja.

– O carro é roubado, Jack…

E daí, ele só queria uma cerveja.

– O carro é roubado – ele repetiu. – Eu acabei de sair da delegacia. Me pegaram por latrocínio.

Jack continuava quieto. O trânsito fluía melhor e o vento entrava pela janela e lhes refrescava.

– Diga alguma coisa, porra!

Ele riu. Jack olhou assustado e se manteve quieto.

– É o seguinte, Jack, vou ter que te passar.

– Me passar?

– É, você sabe… Você tinha visto meu rosto, mas agora você sabe quem eu sou. Vão falar de mim nas rádios daqui a pouco. Eu não posso correr esse risco, você sabe…

– Porra! Porra! Porra! Você vai me meter uma bala na cabeça? Você vai pegar essa arma e meter uma bala nos meus miolos, seu fodido?

– Ei, Jack, qual é a sua? Foi você que abriu o maldito porta luvas, não foi?

O caminhão rodava devagar. Gabe olhava fixo para a estrada. Jack estava quieto e muito pálido. Sua pele parecia pele murcha de lula. Parecia alguma coisa morta. Suas costeletas lembravam pernas de inseto. Era um enorme bagre morto, sentado na carona do caminhão.

– Então você tem que me matar?

– Me desculpe, Jack, mas não posso correr o risco.

– Você mentiu sobre a história do frete e das viagens e…

– Eu tive! Você entende, Jack, eu tinha que me esquivar.

– Você tem uma patroa em algum lugar?

– Tenho várias por aí, Jack. Uma para cada cidade – respondeu Gabe, rindo.

– E filhos?

– Mesma resposta, Jack.

– Hum.

–Eu tenho muito mais a perder do que você.

– Acho que faz sentido.

– A morte não é uma coisa ruim, Jack. Diz a verdade: você gosta de ser um relojoeiro e morar sozinho? Sem uma mulher, sem crianças, sozinho com seu cachorro…

– Meu cachorro tá muito velho…

– A morte não vai ser ruim pra você, Jack. Você pode até dizer que é um presente que eu te dou. Não se preocupe com nada, não vai doer nada.

– Como você pode ter certeza? Você já tomou um tiro antes?

– Vários, Jack. Um em cada cidade.

– Você deve ser um cara muito popular, então.

– E muito querido também.

– Então… – disse Jack, meio amedrontado –, como vai ser?

– Bom, pode ser na cara, no peito…

– Eu gosto da minha cara. Minha mulher gostava da minha cara.

– No peito, então?

– Dói?

– Muito pouco. E por pouco tempo, eu garanto!

– No peito então.

– Você não é um cara muito normal, né, Jack?

– Acho que não tenho muita escolha aqui. Como eu disse, as pessoas nunca devem ficar muito tempo juntas. Alguém sempre sai caído.

– Ei, Jack, não torne isso pessoal. Um cara tem de fazer o que for preciso para ser lembrado. Meu nome estará nos noticiários. Se você quiser, eu posso inventar uma história sobre sua morte, o que você acha?

– Uma história heroica?

– Claro, claro! Bom, sem exageros, naturalmente.

– Como?

– Eu conheço muita gente, Jack. Eu posso espalhar o boato de que você me viu saindo da delegacia e roubando o caminhão, e então você veio tentar me segurar e eu te dei um tiro. “Morte trágica de um cidadão de bem, um herói.” O que você acha?

– Acho bom. Veja só, é logo ali.

Gabe pisou o freio e estacionou perto da rua dos bancos. Ele pegou a arma e verificou as balas. Três. Apontou para o peito de Jack.

– Escuta só, eu tenho uns dois charutos aqui… – disse Jack –, por acaso você…

– Você não está armando pra cima de mim não, né, Jack?

– Porra, claro que não!

Gabe deixou o revolver sobre seu colo e pegou um charuto. Acenderam. Jack fumava e soltava a fumaça em círculos, enquanto olhava para o nada. Ele tinha olhos incógnitos, sem expressão.

– Você vai manter a palavra? – ele perguntou.

– “Cidadão recebe medalha post-mortem. Será erguida uma réplica de seu busto na praça central da cidade.” Você será famoso, Jack.

– Obrigado pela carona, Gabe.