O cultuado escritor russo Nicolai Gógol (1809-1852), autor do clássico “O Capote”, jamais poderia imaginar que duas de suas obras mais singulares ganhasse o mundo e chegasse ao Brasil numa bela versão encapada. Avenida Niévski e Notas de Petersburgo de 1836, ambos lançados por aqui em 2012 num trabalho editorial digno de uma obra de arte que deve ser lida e em seguida guardada a sete chaves (o livro está dentro de um pacote feito com papel que simula recortes de jornais russos do século XIX), esta obra fala sobre a burocracia dos relacionamentos humanos. Parece coisa antiga; contudo, sabemos que a busca incessante do ser amado é a mesma dois séculos depois.

A narrativa de Avenida Niévski acompanha um dia de algumas pessoas na famosa avenida Niévski, localizada no coração de São Petersburgo, então capital do Império da Rússia. Aparentemente esse enredo é entediante considerando que os personagens são burocratas sonolentos que percorrem a principal via da cidade ao lado de outros tipos que vão de governantas a filhos da alta sociedade que enchem a manhã da avenida. Logo após o almoço, são casais nobres e os funcionários ministeriais que entabulam conversa em cafés e confeitarias. Há um certo ar de decência nessa famosa avenida, diz o narrador ao longo do conto sobre a principal avenida imperial da Rússia de então. Mas é com a chegada da noite, porém, que as coisas mudam de figura e as pessoas decentes se transformam em caçadores, farejando rostos femininos sob os chapéus. É nesse contexto de passeio e admiração que acompanhamos a transformação do tenente Pirogóv, que no seu caminho encontra o pintor Piskarióv, dois personagens totalmente opostos. O tenente vai atrás de uma beldade de cabelos negros e de repente se encontro emaranhado num antro de depravação, onde a figura do outro é um ideal quase inalcançável. Pirogóv então foge enlouquecido, depois volta pelas mãos de um empregado de uma cortesã, e já então é como se navegasse num sonho onde tenta perpetuar com ópio obtido numa loja persa esse sonho de conquista. Em sua incansável escalada de busca, Pirogóv acaba se envolvendo com a mulher de um ébrio e violento funileiro alemão. E é exatamente aqui que o livro alcança o seu ponto alto, descrevendo com detalhes os personagens grotescos de uma sociedade pautada pelas aparências. Parece um pouco os nossos dias, mas estamos da Rússia do século XIX.

Imagem: Cosac Naify
Principalmente no caso do texto de Avenida Niévski temos um apanhado sobre a hipocrisia da sociedade russa que bem reflete os principais dilemas do homem moderno. Aquele mesmo indivíduo que nos primórdios da industrialização (século XVIII), do crescimento das cidades e do início das primeiras ganas de liberalidades, este ser caminha errante pelas grandes cidades em busca de companhia para aplacar sua solidão. Tal como os outros personagens grotescos que o tenente Pirogóv encontra pelo caminho, esses indivíduos não refletem apenas uma sociedade determinada no tempo e no espaço – a Rússia imperial – senão toda a natureza de do ser humano como veio a se constituir sob o signo do individualismo, ou seja, agindo puramente por interesse e pautado pelas aparências. Nada mais revelador para os nossos dias atuais, de múltiplos amigos em redes sociais e poucos cumprimentos educados nas ruas.
Assim, há livros que merecem todo nosso carinho (e cuidado) ao serem lidos, tal o trabalho gráfico excepcional realizado por certas editoras. O lançamento de Avenida Niévski e Notas de Petersburgo de 1836 – projeto editorial que atinge em cheio o desejo mais profundo dos apreciadores de livros – disponibiliza ao público brasileiro, para além disso, uma das obras mais emblemáticas sobre a natureza humana. Onde forma e conteúdo estão a serviço da literatura, sentemos a ler este pequeno estupendo literário.
Boa leitura.