Entre as inúmeras obras literárias que abordaram as memórias do período da História do Brasil conhecimento como Ditadura civil-militar (1964-1985), o La Parola traz aqui a resenha do impressionante livro escrito pelo jornalista Bernardo Kucinski, Você vai voltar pra mim e outros contos (Cosac Naify, 2014). O interesse por esta obra ímpar na literatura brasileiro está em seu ineditismo como obra literária, seja pela profundidade do relato, seja pelo apanhado de situações tão diversas e ao mesmo tempo comovente. Uma obra que, sim, deve estar em nossas estantes – como deverá estar também o impactante relato contido no romance K, do mesmo autor.
O livro de contos Você vai voltar pra mim é composto por pequenas narrativas em que o autor busca retratar situações diversas que tiveram como pano de fundo personagem que viveram na pele os anos de repressão militar. Mas a composição dos contos não fica nisso; vamos além e absorvemos em inúmeras narrativas o sentimento, as consequências, as sequelas e as experiências adquiridas pelos protagonistas – ainda que a grande maioria dos personagens esteja do lado de quem sobre o pior da repressão. Talvez aqui, neste particular, os contos não tragam grandes novidades em relação a pouco dezenas de romances que abordaram o período; seu valor está em trazer o depois, aquilo que não foi contado, o cotidiano, a religiosidade, o ângulo inesperado, o silêncio, o detalhe, o fato quem sabe menos mas nem por isso menos importante. Enfim, os contos de Bernardo Kucinski são uma busca incessante em retratar as pequenas coisas, os pequenos eventos e as pequenas epifanias que fizeram o horror dos anos da ditadura. Há ironia nos contos; mas fundamentalmente, há dor.

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Dentro dessa proposta de radiografar o cotidiano de pessoas que talvez não tenham ficado tão conhecidas durante os anos de oposição ao regime instalado em 1964, os contos apanham o outro ângulo. E aí a grande sacada do livro! Estão lá nos contos as crendices religiosas de uma mãe desesperada pelo filho preso (“A beata Vavá”), está lá a dor de enterrar quem nunca foi encontrado (“Velório”), estão presente lá a briga entre pais conservadores e filhos ditos revolucionários (“Pais e filhos”), estão lá os que se deram bem economicamente com a ditadura (“Dr. Carlão”), os que perderam tudo, inclusive a dignidade (o excepcional e comovente “O jogo de chá”) e está lá, e não poderia deixar de faltar, o horror. Em vários contos, mas em especial no que dá nome ao livro (“Você vai voltar pra mim”), em que a falência do sistema judiciário durante a ditadura aparece no sarcasmo do torturador. Aliás, a única ressalva ao livro de Bernardo Kucinski é o fato de faltar um protagonista que estivesse dentro dos quadro do horror, uma vez que os poucos personagem do sistema dominante repressivo são sempre secundários. Mas talvez exigir isso do livro seja insensibilidade ou rabugice de uma crítica literária dissociada da vivência cruel daqueles dias.
Obra instigante. Desafio literário. Cartilha do horror. Depoimento improvável sobre tempos sombrios. Obra tocante pela dor humana, eis o livro de Bernardo Kucinski. E ele deve estar em sua estante. Ainda que dor, ainda que doce crescente ironia.
Boa leitura.