A França não está em guerra atualmente. O país não abriga qualquer conflito bélico em seu interior, além da violência urbana normal dos grandes centros. Mas hoje um atentando terrorista abalou Paris e o mundo: três homens armados entraram na sede do jornal Charlie Hebdo e mataram, ao menos, 12 pessoas. Entre os mortos estão o genial cartunista Georges Wolinski, Stéphane Charbonnier, editor-chefe da publicação e também ilustrador, e Cabu, desenhista incrível, de profunda convicção antimilitarista. Há ainda quatro feridos em estado grave.
A relação da linha editorial do jornal com as bandeiras do histórico Maio de 1968 é total. Wolinski e Cabu eram desta geração. Charb era três décadas mais novo, mas não menos ácido contra o status quo. De uma polivalência incrível, desenhava e escrevia sobre política, costumes, guerras, doenças, televisão, religião e o que mais aparecesse. Ironicamente uma de suas últimas caricaturas traz uma pergunta: “ainda não teve atentado na França?”, ao que um militante fundamentalista responde: “Aguardem, ainda temos até o fim de janeiro para apresentar os votos!”.
O jornal não acertava sempre, na minha humilde opinião. Em determinados momentos o humor passava do ponto do bom senso – que é largo ou estreito, a depender daquilo que carregamos sobre os ombros -, não raro charges caíam na vulgar islamofobia (tão presente na Europa), e não por uma ou duas vezes, as charges contra os extremistas islâmicos jogaram água no moinho do pior inimigo de Charlie Hebdo: a extrema-direita francesa. Entretanto, a arte e o jornalismo devem ser livres, inclusive para errar, inclusive para pagar pelos seus erros, e principalmente para permitir o contraponto. Não se respondem charges e piadas com balas e sangue, nem com veto prévio, não em um mundo democrático!
O legado dos cartunistas assassinados pelo extremismo religioso, nesta manhã de 7 de janeiro, é do mais profundo engajamento contra o obscurantismo e as injustiças sociais. Charlie Hebdo criticava a intromissão das religiões no Estado e na vida pública, engajava-se em campanhas contra o racismo, o fascismo e o sionismo. Nunca foi uma questão religiosa, foi sempre política!
“A Frente Nacional (partido fascista francês) e o fascismo islâmico são da mesma seara e contra eles não economizamos nossa arte” disse Charb, certa vez.
Certamente aumentará o discurso de ódio contra o islã na França e na Europa como um todo; certamente se fortalecerão as posições agressivas do Estado Islâmico e congêneres. Contraditoriamente, dois fascismos opostos se fortalecem ao preço da vida de cartunistas e jornalistas libertários. A política do medo, fundadora do Estado Islâmico e do fascismo, se fortalece (não esqueçamos que as potências ocidentais financiaram este grupo para lutar contra Bashar al’Assad na Síria) e amplifica seu alcance.
Perguntado sobre o medo das ameaças que recebiam ao publicar representações de Maomé, Charb disse:
“Se nos fizermos a pergunta: temos direito de desenhar ou não Maomé, é perigoso ou não publicar, a questão que virá depois será se podemos representar os muçulmanos no jornal, e depois nos perguntaremos se podemos mostrar seres humanos… E no final, não publicaremos mais nada, e o punhado de extremistas que se agitam no mundo e na França terão ganhado.”
A arte está de luto, mas eles, os fascistas de plantão, não vencerão…