A parceria entre Marvel-Netflix deu seu pontapé inicial no dia 10 de abril, sexta-feira, com a estreia de Daredevil. O acordo entre a Marvel TV e a rede de streaming consiste em um projeto de quatro séries — a do Demolidor, Jessica Jones, Luke Cage e Iron Fist —, desembocando em uma espécie de crossover entre os personagens, a minissérie The Defenders. A reprodução da jogada que a Marvel utiliza nos cinemas, um filme para cada herói e depois um longa do supergrupo, foi bem acertada com a primeira série lançada. Na verdade, foi uma jogada do cacete!

Desde os primeiros rumores sobre sua realização, ainda em 2013, coloquei fé e (muita) expectativa em Daredevil. Alguns motivos foram cruciais para a empolgação, dentre eles: o acordo da Marvel com a Netflix, que, junto à HBO, mantém um altíssimo nível em suas produções — vide House of Cards e Orange Is the New Black —, o que me enche os olhos e me prende em longas maratonas; ao fato de rodarem a série realmente em Nova York, e não reproduzi-la em um estúdio em LA — o que é excelente, porque torna a ambientação muito mais real, transformando a história em algo mais imersivo e, de alguma forma, tangível. E por último, a sábia e óbvia escolha pelo Demolidor de Frank Miller.

Frank Miller não era grandes coisas até dar uma guinada de 360º nos quadrinhos do personagem. Até então fazia uns bicos aqui e ali (alô, DC Comics), e de repente passou a ser o cartunista principal do Demolidor para, então, se tornar o seu escritor. É bem verdade que as histórias de Matt Murdock, assim como Miller, não eram grandes coisas também, com poucas vendas e baixo interesse do público. Por ser um grande fã de séries policiais, buscou nelas um tom parecido para empregar às histórias do herói, com um plano de fundo bem mais sombrio, urbano e realista. Assassinos sanguinários, gângsters, prostitutas, políticos e figuras públicas corruptas; a combinação de todos esses elementos deu certo e o personagem renasceu no submundo de Nova York.

O uniforme preto com uma venda cobrindo o rosto do Demolidor é de total autoria de Frank Miller.
O uniforme preto com uma venda cobrindo o rosto do Demolidor é de total autoria de Frank Miller.
A combinação de cores que a série apresenta, com muitos sombreados, lembra bastante as HQs de Miller.
A combinação de cores que a série apresenta, com muitos sombreados, lembra bastante as HQs de Miller.

A série é a produção mais humana da Marvel; ao assisti-la, a sensação de sobriedade e maturidade é notável. A pegada é bem densa, carregada até no humor, e isso ficou claro desde o lançamento do trailer, quando foi visto o clima noir que se segue pelos ambientes, personagens e pelo enredo. Hoje em dia, filmes e séries de super-heróis não são apenas sinônimos de efeitos especiais e do lema ”salvar o dia”, mas de todo um roteiro com carga dramática pontual, aproximando alguém com superpoderes ao ser humano, à realidade corriqueira. Há uma gama de produções deste gênero no mercado, e outras trocentas que já estão confirmadas para vir em breve, seja no cinema ou na TV. Bom para nós.

Daredevil é um ponto fora da curva nas atuais criações da Marvel. Ela é inovadora e, ao mesmo tempo, passa uma sensação de velha conhecida graças ao tom dos quadrinhos de Miller. Ora, como disse, o cara reformulou toda a história de Murdock usando componentes que já estamos familiarizados. A cada cinco filmes ou séries que assisto, cinco me mostram pelo menos uma característica que apontei acima. Por que? Porque são ingredientes que chamam atenção, que são mais propícios ao acerto. Assista aos filmes de cada personagem dos Vingadores e assista a Daredevil para efeito de comparação. A diferença é gritante. Na série do Demolidor, vemos o sangue escorrer como em Clube da Luta. Ela está situada no mesmo mundo de Homem de Ferro e Agents of S.H.I.E.L.D., mas deixa claro desde seu piloto que não veio para contar piadas óbvias e bobas; seu objetivo não é ser mais um blockbuster cheio de fan service — e não estou criticando estas produções, afinal, também curto pra caramba essas bobeiras. O âmbito que a envolve é diferente, talvez à procura de um público alvo díspar. A sensação ao ver as lutas e assassinatos é a mesma ao ver uma série policial ao estilo True Detective, só que sem tantas exuberâncias que a HBO deixa rolar.

Demolidor Marvel Netflix (3)

A trama se desenvolve após a batalha vista em Vingadores, que deixou rastros de destruição por toda Nova York. De um lado é apresentado o vilão Wilson Fisk aka Rei do Crime (Vincent D’Onofrio), que busca lucrar em cima desta situação, se utilizando de todos os meios possíveis de corrupção. Do outro, Matt Murdock (Charlie Cox), o advogado bom samaritano diurno que assume o papel de vigilante à noite, combatendo policiais corruptos, ladrões, estupradores etc. A grandeza de ser um super-herói que luta contra aliens ou um que veste uma armadura absurdamente tecnológica, enfrentando situações planetárias, é trocada pela simplicidade de defender cidadãos de perigos cotidianos, tão comuns no gênero drama criminal. A postura mais humana da série se dá nesta característica. Para completar o quarteto principal da série, Foggy Nelson (Eiden Henson) e Karen Page (Deborah Ann Woll) formam não só um triângulo amoroso com Murdock, como também o núcleo de alívio cômico. O humor da série é diferente das demais produções da Marvel, é comedido e pontual, e não atrapalha o clima carregado. Na verdade, é o contraponto às monstruosidades de Fisk e aos desgastes psicológicos de Murdock. Tudo sempre bem ponderado. É um excelente elenco!

Demolidor Marvel Netflix (2)

A violência extremamente gráfica empregada à série é mais um presente da Marvel, uma vez que isto não é comum em suas produções. É normal vermos cabeças e olhos esmagados em Game of Thrones, então foi uma grata surpresa assistir algo tão cru em Daredevil. Ao longo dos episódios, o desgaste físico e psicológico de Murdock é evidenciado com maestria por Cox, que, assim como Kevin Spacey em House of Cards, não esconde do público as piores singularidades de Matt Murdock, criando um sentimento dúbio de empatia e desagrado com as atitudes do personagem. Além da — ao meu ver — perfeita atuação de Charlie Cox, a direção da série também está impecável, com uma bela fotografia e ótimos planos-sequência. O texto da série é excelente, com muitas pitadas de Frank Miller em seu decorrer.

Charlie Cox dá vida ao personagem com maestria, não escondendo nem mesmo as faces mais desagradáveis do herói.
Charlie Cox dá vida ao personagem com maestria, não escondendo nem mesmo as faces mais desagradáveis do herói.

O famoso óculos vermelho de Murdock poderia entrar facilmente para a coleção de Liam Gallagher, tamanha a peculiaridade e semelhança com alguns modelos do ex-Oasis. Na verdade eu queria um par como objeto de decoração.

O que achei bem interessante também foi o modo que usaram para captar os sentidos aguçados de Murdock, onde a direção parece imitar o que estamos acostumados a ver em algumas produções: o efeito tilt-shift. É como se a perspectiva ganhasse um aumento na profundidade do campo de visão. Você encontra este efeito facilmente no Instagram e em outros aplicativos de fotografia, por exemplo.

Demolidor Marvel Netflix (1)

Easter eggs não faltam em Daredevil; na verdade, não poderiam faltar. Referências sutis à batalha em NY, referência ao Universo Cinematográfico da Marvel, à Elektra (é claro!), ao Stick, à Madame Gao, ao Iron Fist etc. O melhor, entretanto, foi o cameo de Stan Lee em um quadro pregado na parede, que passou despercebido por muitos.

Stan Lee

Daredevil se lança ao mercado como uma produção ousada e honesta, gerada a partir de uma parceria com sinônimo de sucesso (e isto não é merchandising), e que comprova a boa safra da Marvel nos últimos anos. A próxima da lista é Jessica Jones. Vale muito a pena conferir os 13 episódios em uma maratona. O problema é que quando acaba fica um gostinho de quero mais.

PS: Beijo no coração da Fox por ter devolvido a franquia à Marvel. Merecem uma estrelinha.

PS 2: Beijos no coração da Netflix por apresentar uma história incrível sobre o personagem. Obrigada. Mesmo.