Demolidor: O homem de muitos medos

Desde a primeira cena que antecede os créditos iniciais do programa, a série do Demolidor concebida pela Netflix em parceria com a Marvel demonstra o abismo gigantesco de qualidade, caso reflitamos sobre a esquecível adaptação aos cinemas do filme homônimo protagonizado por Ben Affleck. Isso acontece simplesmente por questão de coesão e profissionalismo dos envolvidos, algo que a Casa das Ideias está conduzindo de forma surpreendente ao lado da Disney nos cinemas e na TV. O principal diferencial da nova leitura do anti-herói (que quanto à carga dramática assemelha-se ao Batman na DC) está em colocar o mesmo sob a perspectiva do real, do tangível.

O seriado disponível em toda a sua primeira temporada é totalmente sombrio e gráfico. A abertura da série é um deleite visual dos mais líricos e sublimes já vistos na mídia. Existe todo um cuidado e referências de encher os olhos de fãs e desconhecidos sobre a cânone do personagem. Seguindo adiante, o programa persiste em quase uma hora de duração durante os 13 episódios, realizando a síntese emocional e constituída dos seus vários protagonistas, adentrando diversas camadas de imenso peso como um todo. Na verdade, assistir Demolidor ou qualquer outro seriado do canal stream é como contemplar um filme inteiro ou parte dele, sem aquela sensação de incompleta do formato tradicional das séries americanas.

Continuando no universo de Hell´s Kitchen, evidentemente existiram inúmeros easter eggs e ganchos para outras séries das quais a Marvel pretende adaptar no mesmo tempo (lembrando que Demolidor situa-se após os eventos de Os Vingadores), sem contar todo o legado proveniente das HQS, principalmente os arcos que deixaram o Demolidor sair do ostracismo dos quadrinhos pelas mãos de Frank Miller, contam e muito para uma qualidade superior e resultante no sucesso de crítica e público.

O show foi produzido e criado por Drew Goddard, nerd assumido e pupilo de ninguém menos que Joss Whedon, a mente por trás do sucesso dos Vingadores nos cinemas. Goddard teve entre os seus trabalhos, roteiros da série Buffy, Angel, Alias e Lost, além do filme baseado em imagens gravadas, Cloverfield. Goddard entendeu do universo do Demolidor e absorveu todos os nuances e complicações das personalidades e medos de Matt Murdock. É impressionante a carga dramática desenvolvida pelos personagens e em como os intensos diálogos, aliados a uma ambientação noir da série, contribuem igualmente através de um todo. Certas vezes, fica difícil imaginar que se trata da adaptação de um personagem das HQS.

Demolidor - Série - Netflix (10)

O elenco muito bem sincronizado e talentoso é outro ponto extremamente forte ao longo da jornada. Charlie Cox e cia simplesmente protagonizam um show à parte. Os mesmos exibem os medos reais de uma estrutura social e política condizentes da ambientação apresentada. Herói e vilão terminam por ser apenas conceitos ambíguos e a determinação dos atores e envolvidos no trabalho apenas demonstram o comprometimento de um estúdio que há pouco menos de 10 anos atrás começou a engolir o mercado de blockbusters nos cinemas e todas em outras mídias possíveis.

Obviamente, Demolidor não está isenta de erros. Ainda que a série seja realista, bruta, sanguinária, e visualmente angustiante, diversos clichês dos mais variados e a previsibilidade dos rumos dos principais arcos desenvolvidos durante a temporada são evidentes e nada que deixe o espectador sem fôlego, mas quanto a forma como são demonstradas, aí sim mergulham no cerne do nerd e do não nerd de tal forma que assistir cada episódio é uma experiência satisfatória e coerente.

Portanto, a solução é curtir conforme possível e esperar, Jessica Jones, Luke Cage, Punho de Ferro e diversos outros personagens considerados “b” do estúdio para que culminem na minissérie Os Defensores, também a serem todos exibidos pelo Netflix. De fato, Demolidor é um homem de muitos medos, como todos os homens sem poderes, mas com sentimentos, erros, acertos e outras falhas e dons pertinentes ao ser humano, sombriamente, humanamente.