Muito já foi dito, desde 7 de janeiro, sobre o periódico Charlie Hebdo. Eu já escrevi uma opinião sobre, no dia da tragédia, mas sinto necessidade de voltar ao tema pela imensa mistificação criada, nas redes sociais, em torno da revista.
Vamos por partes, pois muita coisa foi dita por quem nunca leu uma linha sequer de Charlie Hebdo. Multiplicaram-se galerias de capas e “explicações” nos principais jornais brasileiros, e com a ajuda do Google Translate, foi-se criando uma série de rótulos para a revista. Uns condizentes, e outros absolutamente mentirosos. Neste texto quero falar apenas do suposto racismo de CH.
A charge acima circula pelas redes como prova inconteste do racismo de Charb (editor de Charlie Hebdo). Nada mais falso e descontextualizado. Trata-se, na verdade, de uma charge anti-racista. Confuso? Explico. Alguns dias antes de Charb publicar esta charge, a ministra da justiça Christiane Taubira foi achincalhada por um periódico de extrema-direita chamado Minute, ligado ao National Front, cuja a charge continha: “Maligne comme un singe, Taubira retrouve la banane” (Maliciosa como um macaco, Taubira encontra a banana).
A revista inclusive foi condenada a pagar uma multa. Charb, no entanto não se deu por satisfeito e disparou a seguinte charge (agora sem recortes):
Ao lado da charge da ministra está o símbolo do National Front, e acima dela está o nome da coalização de extrema-direita que apoiou Marine Le Pen (Rassemblement Bleu Marine), mas o nome de Marine está trocado pelo adjetivo racista. Ou seja, quem estava sendo satirizada na charge era a revista de extrema-direita, e não a ministra. A charge é como se dissesse: “é assim que o National Front vê a ministra”. Logo depois do caso, Charb deu a seguinte declaração: “Minute n’est pas Charlie Hebdo. Le racisme n’est pas de l’humour” (Minute não é CH. O racismo não é humor). Confira as declarações de Charb aqui.
Agora abaixo uma charge, do mesmo Charb, para uma campanha de combate ao… racismo.
Lê-se: “Quebre o silêncio! – Gostaria de contratá-lo, mas não gosto da cor da… erh… sua gravata”. Embaixo o chamado: “abramos nossos olhos para a discriminação”. Será que uma entidade que luta contra o racismo usaria uma charge de um racista?
Outro argumento que circula é que CH apenas satirizava os muçulmanos, o que reforçaria a ideia racista e xenófoba contra os árabes. Se é verdade que algumas charges da revista contribuía para reforçar estereótipos (não se acerta sempre), é uma mentira completa que CH apenas satirizava os muçulmanos. O principal alvo de CH era, e sempre foi, a extrema-direita francesa, o fascismo europeu e as guerras. É, sobretudo, uma revista nascida no espírito do maio de 68 francês!
A charge mais “pesada” que vi, inclusive, é uma que retrata o Deus cristão, junto ao seu filho e ao espírito santo, numa posição sexual. A França é um país de maioria cristã.
Outros ainda dizem que era um humor “muito pesado”. Bom, para os nossos parâmetros sim, para os parâmetros franceses não. É importante lembrar do papel do anticlericalismo iluminista na constituição da França enquanto Estado-nação, e também a função que desempenharam os folhetins cômicos e satíricos durante toda a história da França. (Recomendo a leitura desta entrevista com Laerte).
Há, evidentemente, várias leituras possíveis, mas devemos fazê-las com base em informações sólidas, e não em particularidades descontextualizadas. E sobre o “respeito”, reafirmo a máxima (cliché): “as pessoas merecem todo o respeito, as ideias não merecem nenhum!”, e por isso sou Charlie!