Sobre heróis que conheci em Kathmandu

Basantapur

Kathmandu, Nepal, 25 de Abril de 2015. Dois minutos e tudo mudou. Quase 9 mil mortos, mais de 3 milhões de desabrigados e um clima de tensão permanente que é difícil descrever. Mesmo distante já no tempo e no espaço, ainda não consigo construir uma versão do que foi viver em Kathmandu antes e depois do terremoto. Quem sabe um dia expresse melhor esse fado mas, por enquanto, só carrego histórias alheias, histórias de heróis que conheci.

Entardecer em Basantapur, centro histórico de Kathmandu, antes do desastre.
Entardecer em Basantapur, centro histórico de Kathmandu, antes do desastre.
Basantapur após o terremoto...
Basantapur após o terremoto…

A ideia toda do heroísmo no ocidente é triunfar sobre a morte. É divino aquele que se torna imortal. Nos países que fazem parte do espectro cultural indiano o herói não é o que nunca morre, mas aquele que não torna a nascer. A vida é sofrimento, triunfar é partir para a “outra margem”, para além do ciclo sem fim do Samsara.

Existe, porém, um outro tipo de herói que caminha entre esses dois extremos, o Bodhisattva. Ele não busca a vida eterna prometida aos fiéis, mas também não anseia pela fuga do Samsara imediatamente. No Budismo esse “heroico guerreiro do despertar” observa a insatisfatoriedade do mundo e, ao invés de ansiar por fugir dela, permanece ali imerso com o compromisso de diminuir o sofrimento de todos os seres através de infinitas vidas. Nessa batalha, são apenas duas as armas do Bodhisattva: sabedoria e compaixão.

Gilad prestando auxílio às vítimas.
Gilad prestando auxílio às vítimas.

Se a vida que vivemos em um ano de Kathmandu tem algum valor, ele é medido pelas pessoas incríveis que conhecemos. Em momentos trágicos como o final da nossa estadia os Bodhisattvas são abundantes. Um deles pra mim foi o israelense Gilad Yakir, meu colega no Rangjung Yeshe Institute, que enfrentou horas de escaladas para levar assistência médica, abrigo e mantimentos para as comunidades inacessíveis das montanhas nepalesas. Pouco antes de deixarmos Kathmandu ele me confessava em um bar que até em sonho não conseguia se livrar do cheiro de gente morta.

Shane e seu "anjo", a pequena Khandro.
Shane e seu “anjo”, a pequena Khandro.

Outro herói foi o estadunidense Shane Base. Marine veterano da guerra do Afeganistão e Iraque, grande amigo e também colega no monastério, um dos poucos com real treinamento de resgate. Por segundos não foi soterrado nos incontáveis aftershocks ao redor do vale (foram centenas!) e, em uma de suas expedições, carregou nas costas a pequena Khandro que tinha a perna infestada de vermes. Com poucos recursos médicos conseguiu amputar o membro da menina, salvou sua vida e passou a chamá-la de “Anjo”. Até hoje mantém um crowdfunding para auxiliar no tratamento e na reconstrução da vida da sua nova filha.

Phakchok Rinpoche era incansável!
Phakchok Rinpoche era incansável!

Phakchok Rinpoche é parte de uma linhagem de mestres Budistas muito importante no Nepal. Ele é considerado um Lama (professor) reencarnado, ou seja, a personificação do ideal do Bodhisattva que retorna para mitigar o sofrimento universal. Rinpoche era incansável! Lembro de chegar até o nosso refeitório (que virou depósito de doações) e vê-lo carregando sacos de arroz e lentilha, planejando e ainda dando conselhos. Ele foi um dos personagens principais no grande trabalho feito pelos monastérios no período pós-desastre. Não apenas coordenando e buscando recursos, mas ativamente participando das missões em áreas restritas e ajudando centenas de pessoas juntamente com as ONGs Ranjung Yeshe Shenpen e Chokgyur Lingpa Foundation.

Sangbo e GMIN no auxílio às vítimas.
Sangbo e GMIN no auxílio às vítimas.

Em nossa vida “normal” morávamos em um pequeno apartamento próximo à grande stupa de Boudhanath. O proprietário do imóvel era Lobsang Sangbo, um nepalês de origem tibetana que abrigava e educava meninos de rua em sua própria casa. Após o terremoto ele largou todos os seus negócios particulares, abriu seu espaço como refúgio para todos os moradores locais, provendo comida e abrigo para centenas de pessoas diariamente. Já pensou nisso? Coordenava um grupo chamado GMIN e (apesar das reclamações de sua esposa) trabalhava 18 horas por dia buscando doações, comprando lonas, comida, medicamentos etc. Materiais que seriam enviados para as vilas menos assistidas pelo governo e ONGs internacionais. Nunca vi o Lobsang reclamar ou deixar a cordialidade de lado.

E nós? Bem, como falei, ainda não tenho uma história para contar. Eu e minha namorada (heroica, obrigado por estar junto Alana <3) ajudamos no que foi possível, arrecadamos generosos R$ 30.000,00 junto aos amigos brasileiros, visitamos vilas no interior e doamos todo o nosso tempo entre compras e carregamentos. Porém nossa ação foi apenas de mediar a generosidade desses doadores brazucas, o que não teria sido possível sem o grupo AjudaNepal.org capitaneado pelos amigos Guilherme Samel e João Pedro Demore… Enfim, nada sequer próximo desses heróis verdadeiros que mencionei acima! Depois de regressar ao Brasil, sempre que passo por alguma dificuldade, lembro dessas pessoas (e inúmeras outras que não cabem nesse texto), lembro do povo nepalês e tudo fica menor. Afinal, qualquer problema é pequeno quando lembramos dos Bodhisattvas que caminham anônimos, entre uma vida e outra, armados apenas de sabedoria e compaixão.