A Era da Liquidez: Parte III (Amor Líquido)

amor líquido

Essa é a parte III da série ‘A Era da Liquidez’, que discute a fundo sobre as principais reflexões, filosofias e ideias do polonês Zygmunt Bauman, um dos sociólogos mais intelectuais, inteligentes e precisos da atualidade.

A obra de Bauman é extremamente perspicaz na análise de problemas sociais que norteiam a experiência cotidiana do indivíduo contemporâneo, inserido na conjuntura de valor denominada de “Modernidade Líquida”.

O autor explora, cirurgicamente, alguns temas intrínsecos ao atual contexto social de liquidez. Nesse caso, a perspectiva é o amor.

A fragilidade dos laços humanos

Por que as relações humanas estão cada vez menos significativas?

No livro Amor Líquido: Sobre a Fragilidade Dos Laços Humanos, Bauman procura investigar a natureza dos relacionamentos humanos, focando as relações amorosas na atual sociedade. Amor Líquido tem o seguinte objetivo:

A misteriosa fragilidade dos vínculos humanos, o sentimento de insegurança que ela inspira e os desejos conflitantes (estimulados por tal sentimento) de apertar os laços e ao mesmo tempo mantê-los frouxos, é o que este livro busca esclarecer, registrar e apreender.

Bauman usa o termo “amor líquido” para melhor representar a fragilidade das atuais relações amorosas. Segundo ele:

“Amor líquido é um amor até segundo aviso, o amor a partir do padrão dos bens de consumo: mantenha-o enquanto ele te trouxer satisfação, e o substitua por outros que prometem ainda mais satisfação. É o amor com um espectro de eliminação imediata e, assim, também de ansiedade permanente, pairando acima dele. Na sua forma “líquida”, o amor tenta substituir a qualidade por quantidade — mas isso nunca pode ser feito, como seus praticantes mais cedo ou mais tarde acabam percebendo.”

De acordo com Bauman, o amor líquido é mais um produto da modernidade líquida, um período caótico e fragmentado em que as pessoas, em geral, se sentem mais confusas e inseguras consigo mesmas, com o espaço que habitam e com o tempo que as cerca.

A modernidade líquida vem gerando uma crise emocional tamanha que assola as pessoas em individualismo, egocentrismo e narcisismo extremados, levando o homem à clara possibilidade de sentir-se desprovido, inseguro e avulso. E a sociedade líquido-moderna, prisioneira desse sistema rotativo de inclusão/exclusão nas relações afetivas, receia cada vez mais a potência unificadora do amor. Bauman questiona: “É possível expressarmos verdadeiramente afeto por alguém? Amamos uma pessoa pelo que ela é, ou pelo que ela representa para nós?”

A “moralidade líquida” optou pela segunda possibilidade, fazendo sempre da figura do outro um estranho que só adquire importância quando se presta a satisfazer os nossos objetivos egoístas. Note que essa reflexão lembra bem A Metamorfose, de Franz Kafka.

De fato, o homem pós-moderno é corroído pela insegurança; sem vínculos de longo prazo e livre de compromissos.

“No contexto da vivência líquida, amar se caracteriza sempre como um ato arriscado, perigoso, pois não conhecemos de antemão o resultado final das nossas experiências afetivas: só é possível nos preocuparmos com as consequências que podemos prever e é somente delas que podemos lutar para escapar.”

Para Bauman, a persona do homem desimpedido e a liquidez do amor contemporâneo são causalidades da excessiva racionalidade moderna.

Hoje, a definição romântica de amor está fora de moda. Sendo assim, ainda faz sentido sonhar com um relacionamento estável?

De acordo com Bauman, tanto os relacionamentos sólidos quanto os líquidos têm suas vantagens e desvantagens mas, em um mundo líquido, em rápida mutação, compromissos para a vida podem se revelar como sendo promessas que não podem ser cumpridas, deixando de serem algo valioso para virarem dificuldades.

Há uma preferência em livrar-se da complexidade de relacionamentos pela ótica de que compromissos são, antes de tudo, chateações. Por essas e outras, o amor líquido escapa de nossas mãos como a água evapora no ar.

Na sociedade líquido-moderna, a “solidificação” do amor não depende de um entregar-se ao outro (como deveria ser), mas sim das duas partes tirarem vantagem uma da outra (como realmente é).

A oferta de coisas (e pessoas) é abundante, e assim reduz-se o valor emocional atribuído. Nossas relações estão cada vez mais flexíveis e instáveis, o que gera medo e insegurança em níveis também crescentes.

Em Amor Líquido, Bauman empresta uma frase de Ralph Emerson:

“Quando se esquia sobre gelo fino, a salvação está na velocidade”.

Ou seja, na falta de um porto seguro para a nossa solidão, na falta de alguém que nos ajude a suprir a necessidade de eliminar a agonizante separação com o outro, o ser humano pós-moderno mergulha nas relações líquidas: rápidas, descompromissadas, fúteis e sem valor.

Homens e mulheres se vêem presos numa trincheira; em meio a um fogo cruzado que os faz entrar em competição, não em cooperação.

Uma influência que Bauman utilizou para escrever Amor Líquido foi a obra A Arte de Amar, de Erich Fromm, que trata de algumas faculdades do amor. Um dos trechos, obscuro, diz o seguinte:

“O amor pode ser, e frequentemente é, tão atemorizante quanto à morte, mas ele encobre essa verdade com a comoção do desejo e do excitamento. Faz sentido pensar na diferença entre amor e morte como na que existe entre atração e repulsa. Pensando bem, contudo, não se pode ter tanta certeza disso. As promessas do amor são, via de regra, menos ambíguas do que suas dádivas. Assim, a tentação de apaixonar-se é grande e poderosa, mas também o é a atração de escapar. E o fascínio da procura de uma rosa sem espinhos nunca está muito longe, e é sempre difícil de resistir.”

Segundo eles, não se pode aprender a amar da mesma forma que a morte não pode ser ensinada, e não podemos evitar uma coisa nem a outra.

Assim como a morte, o amor é uma certeza da vida, e as pessoas que enxergam vantagens na liquidez amorosa acabam não amando de fato; na verdade, isso as torna incapazes de amar.

Essa incapacidade de amar insurge um senso de criação do amor, já que, não havendo provas do amor verdadeiro, torna-se mais fácil convencer de que nunca existiram. É como se houvesse uma sonegação do ato de amar.

Em Amor Líquido, Bauman também comenta sobre a convivência nas cidades, que ao mesmo tempo nos aproximam fisicamente e nos afasta com a instauração do medo e a organização em silos (guetos, condomínios e afins). Ele diz que somos hostis a quem nos é estranho, e que a arquitetura moderna das cidades fomenta o conflito, não o amor.

“Viver na cidade é uma experiência ambígua.”

Em busca de uma fuga dessa realidade amedrontadora, a sociedade líquido-moderna opta por estabelecer vínculos virtuais, evitando assim o comprometimento (e a dúvida) de relacionamentos presenciais.

“O tipo de medo e incerteza que assombram homens e mulheres no ambiente fluído de perpétua transformação, em que as regras do jogo mudam no meio da partida sem qualquer aviso ou padrão legível, não une os sofredores: antes os divide e os separa.”

Durante todo o livro, Bauman reforça um de seus principais argumentos, de que a incerteza é o aspecto mais atenuante da longevidade de relacionamentos humanos:

“Estar num relacionamento significa muita dor de cabeça, mas sobretudo uma incerteza permanente. Você nunca poderá estar plena e verdadeiramente seguro daquilo que faz, ou de ter feito a coisa certa no momento preciso. Ser duplo significa consentir em indeterminar o futuro.”

Bauman também cita aquele verso bíblico do “ame ao próximo como a ti mesmo”. Para ele, isso é tão utópico hoje em dia que o amor próprio em si não é mais suficiente para reconhecer amor pelo outro.

De acordo com ele, é preciso haver uma instância moral entre as partes para existir um mínimo laço de afeição genuína.

As pessoas se afastam de relacionamentos principalmente pelo medo da rejeição, o que é natural e, na atual sociedade, quase iminente. No entanto, esse medo quase sempre acarreta em desconfiança, e uma estratégia comum para suprir isso é nos posicionar como pessoas irresolutas. E isso é bem claro, pois, na atual conjuntura das relações interpessoais, ninguém é considerado insubstituível.

As pessoas pensam que podem resolver problemas cortando vínculos, mas o que elas fazem mesmo é agravar conflitos criando complicações futuras.

Relacionamentos de bolso

Realmente, vivemos em tempos líquidos, incertos e imprevisíveis, onde pessoas superficiais protagonizam relacionamentos artificiais. O que se vê não mais transparece, e pouco representa.

As relações amorosas atuais são práticas de mercantilismo, com as pessoas sendo tratadas como mercadorias. Assim como automóveis, roupas, sapatos, celulares e computadores, por exemplo, pode-se trocar uma pessoa pela outra quando houver algum defeito.

Bauman chama isso de “relacionamento de bolso”, do tipo que se pode usar e gozar a bel prazer, e depois guardar para usar em outra ocasião.

“Talvez o fato mais curioso da condição amorosa da atualidade é que, apesar de toda liberdade sexual que conquistamos, tal fato não favoreceu de modo algum o enriquecimento das nossas relações amorosas; pelo contrário, o indivíduo contemporâneo em nenhum momento demonstra superioridade nas disposições amorosas do que a humanidade medieval ou antiga. A magia romântica do amor dissolveu- se na velocidade da vida dinâmica em que vivemos na vertiginosa era da alta tecnologia.”

As práticas amorosas refletem uma tendência de esvaziamento da interatividade humana, pois a nova ordem agora é apenas usufruir aquilo que o outro nos oferece, para que em seguida possamos descartá-lo sem qualquer peso na consciência.

A lógica do descarte impera na era da liquidez humana e, assim, relações terminam tão rápido quanto começam.

“As práticas líquidas do “amor” representam uma transposição da lógica consumista para o âmbito das relações humanas, pois o propósito maior é obter o máximo possível de contatos sexuais, em detrimento da qualidade e da profundidade das vivências. Nesse processo de degradação da experiência amorosa, o mais importante é aumentar cada vez mais o catálogo de nomes das “conquistas”, tudo em nome da soma de prazeres sensoriais, que, todavia, nunca satisfazem os desejos do fragmentado homem da pós-modernidade. Um desejo sendo realizado não gera um estado de satisfação duradouro na afetividade do indivíduo, levando-o então a correr atrás de novas conquistas, que servem de estímulos fortes para a manutenção de sua frágil sanidade psíquica. Esse processo de busca desenfreada por novas conquistas ocorre muitas vezes por uma necessidade narcisista do indivíduo adquirir reconhecimento diante dos seus “amigos” e de sua própria sociedade, caracterizando assim a falsa imagem de que o homem pretensamente bem sucedido sexualmente é feliz.”

Tememos a proximidade do outro não só pelo medo da rejeição, mas também por não termos plena convicção do tipo de relação que estamos querendo. Incertos, inseguros e confusos dessa forma, como saber o que esperar do outro? E como firmar vínculos duradouros?

“Talvez a própria ideia de relacionamento contribua para essa confusão. Apesar da firmeza que caracteriza as tentativas dos infelizes caçadores de relacionamentos e seus especialistas, essa noção resiste a ser purgada de suas conotações perturbadoras e preocupantes.”

A capacidade de satisfazer-se plenamente com o outro através de uma relação sentimental é algo mais raro hoje. Na realidade, o que existe mesmo é uma pobreza existencial em grande escala e, mais ainda, uma absurda falta de compreensão que assassina qualquer vínculo empático humano.

Relacionamento também é questão de escolha, com ganhos e perdas consideráveis. E essa incerteza crônica prejudica também nossa resiliência em lidar com fracassos, perdas e desilusões amorosas.

“Para sermos felizes, dois valores são indispensáveis: segurança e liberdade. Você não consegue ser feliz e ter uma vida digna na ausência de um deles. Segurança sem liberdade é escravidão. Liberdade sem segurança é um completo caos. Você precisa dos dois. Cada vez que você tem mais segurança, você entrega um pouco da liberdade. Cada vez que você tem mais liberdade, você entrega parte da segurança. Você ganha algo, e você perde algo.”

Bauman adapta a tese de Rousseau de que “os seres humanos trocam liberdade por segurança”. Agora, nós trocamos segurança por liberdade, que além de nos trazer uma responsabilidade a qual ainda não sabemos lidar, nos torna também mais indiferentes à afetividade.

Nunca houve tanta liberdade na escolha de parceiros, nem tanta variedade de modelos de relacionamentos; nunca os casais se sentiram tão impotentes para decidirem o futuro, e nunca foram tão ansiosos para rever ou reverter o rumo de suas relações. É a liquefação do amor.

“É um erro acreditar que a experiência de se relacionar superficialmente irá gerar experiência para um relacionamento duradouro. Relacionar-se superficialmente ensina a ser cada dia melhor nisso, enquanto a experiência de fazer durar só se adquire fazendo durar.”

Em uma sociedade onde o amor é líquido, Bauman argumenta, é preciso diluir as relações para que possamos consumi-las.


Referências bibliográficas:

BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: Sobre a Fragilidade Dos Laços Humanos.

BAUMAN, Zygmunt. Medo Líquido.

FROMM, Erich. A Arte de Amar.

BITTENCOURT, Renato. A Estrutura Simbólica da Vida Líquida em Zygmunt Bauman.