Essa é a parte IV da série ‘A Era da Liquidez’, que discute a fundo sobre as principais reflexões, filosofias e ideias do polonês Zygmunt Bauman, um dos sociólogos mais intelectuais, inteligentes e precisos da atualidade.
A obra de Bauman é extremamente perspicaz na análise de problemas sociais que norteiam a experiência cotidiana do indivíduo contemporâneo, inserido na conjuntura de valor denominada de “Modernidade Líquida”.
O autor explora, cirurgicamente, alguns temas intrínsecos ao atual contexto social de liquidez. Agora, o tema de interesse é consumo.
Consumo líquido
Em seu livro Vida Para Consumo, Bauman parte da tese de que deixamos de viver numa sociedade de produtores e passamos a uma organização social baseada puramente no consumo, na qual as pessoas se tornaram elas próprias mercadorias descartáveis que precisam se remodelar continuamente para não ficarem obsoletas.
“Numa sociedade marcada pela agitação, pela ansiedade e acima de tudo pela incapacidade de obter uma experiência profunda de felicidade e bem-estar, a disposição consumista desponta como uma forma compensatória do indivíduo vir a obter um razoável nível de prazer em sua vida cotidiana.”
Bauman afirma que caráter, valores e personalidade estão sendo colonizados pela lógica de mercado, e as pessoas vão constantemente criando imagens de si mesmas com o principal objetivo de se venderem, como produtos a serem consumidos.
Especialmente nessa era da liquidez, as pessoas estabelecem laços passageiros que facilmente podem ser desfeitos, o que torna conveniente a melhoria constante de sua imagem como produto. Segue-se a lógica do “quanto menos profundidade, melhor”.
Na era da liquidez, o consumo serve primeiro para fixarmos nosso lugar na sociedade e nos distinguirmos das outras pessoas; para darmos uma ilusão de ordem às coisas e nos sentirmos cidadãos. Múltiplos estereótipos derivam daí, uma vez que “somos aquilo que consumimos”.
Segundo Bauman, as pessoas na sociedade líquida vivem em constante fantasia de que suas vidas têm que ser uma obra de arte, por isso, há sempre a comparação com a vida dos outros e a busca incessante para alcançar aquilo que não se tem.
“É uma vida de consumo. É uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante. Significa constante autoexame, autocrítica e autocensura. Um tipo de vida que alimenta a insatisfação do eu consigo mesmo.”
Os mercados de consumo oferecem um remédio milagroso para a insatisfação intrínseca: são substitutos para o auto-sacrifício que o amor e a responsabilidade exigem reiteradamente; substitutos para a representação “natural” daquilo que não é mais oferecido. Dessa forma, o ato de comprar torna-se uma espécie de ato moral.
Bauman sugere que consumir (e ser consumido) se tornou não apenas o verdadeiro propósito de existência para um número crescente de pessoas, mas também uma condição de reprodução do nosso modelo social, em que tudo se transforma em moeda de troca simbólica (incluindo a juventude, a beleza, a sexualidade, etc). Gastos aparentemente inúteis e irracionais se tornaram, mais que virtudes, um novo motor na existência social.
“Isso também ajuda a entender a obsessão das pessoas pela fama, já que na sociedade de consumidores a invisibilidade equivale à morte social. Quando a interioridade é desvalorizada, o olhar e o reconhecimento do outro se tornam a única garantia de que existimos de verdade.”
A precariedade e o risco passam a ser os principais aspectos da condição humana, daí o imperativo de desfrute imediato dos prazeres e satisfação de desejos (logo substituídos por novos prazeres e desejos). Como resultado, a nossa capacidade de tratar o outro com humanidade é reduzida, e a solidariedade se desintegra.
Felicidade artificial
Segundo Bauman, a felicidade hoje está idealizada no propósito de consumo, com pessoas trocando interesses emocionais através de mercadorias. Todavia, mercadorias não suprem a necessidade humana por relações emocionais genuínas, e a maior conseqüência disso é uma sociedade com altíssimos índices de depressão e transtornos psicológicos dos mais variados e exóticos possíveis.
Apoiando-se na firme estrutura do mercado consumidor, Bauman enriquece aquela velha máxima de Nietzsche em que “o destino dos homens é feito de momentos felizes, e não de épocas felizes”.
Em Vida Para Consumo, Bauman nos lembra que a busca da felicidade baseada em preceitos materialistas é infinita, assim como o consumo também nunca terá um fim. Já que a felicidade nunca é alcançada e os padrões de satisfação são sempre maiores do que podemos atingir, atribuímos ao mercado o papel de produtor/inventor da felicidade; tornamo-lá assim artificial.
“Algum tipo de sofrimento é um efeito colateral da vida numa sociedade de consumo. Numa sociedade assim, os caminhos são muitos e dispersos, mas todos eles levam às lojas. Qualquer busca existencial, e principalmente a busca da dignidade, da autoestima e da felicidade, exige a mediação do mercado.”
Além disso, Bauman reflete que a felicidade está associada com sentir-se parte dos grupos em que se identifica e convive, ou seja, a felicidade depende muito também de aprovação. Não ser rejeitado passa a ser uma tarefa fixa que envolve conseguir reconhecimento social como única garantia de respeito e, assim, nossa dignidade acaba sendo corrompida.
Em conceito destilado, Bauman diz:
“A felicidade é o gozo que dá ter superado os momentos de infelicidade.
Então, como podemos separar felicidade de consumo? Segundo Bauman:
“Não se pode escapar do consumo: faz parte do seu metabolismo! O problema não é consumir, é o desejo insaciável de continuar consumindo. Desde o paleolítico os humanos perseguem a felicidade, pois os desejos são infinitos, e assim as relações humanas são sequestradas por essa mania de apropriar-se do máximo possível de coisas.”
Para Bauman, as pessoas da sociedade líquida são comensais; seres guiados pelo consumo. Fazendo uma metáfora, ele diz que o mundo está repleto de possibilidades, como uma mesa de bufê com tantos pratos deliciosos que nem o mais dedicado comensal poderia provar de todos, e isso implica na irritante tarefa de termos de estabelecer prioridades em meio a tantas opções inexploradas:
“A infelicidade dos consumidores deriva do excesso e não da falta de escolha.”
O crime da humilhação
Em Vida Para Consumo, Bauman resgata e alimenta a famosa Teoria das Classes Ociosas, de Veblen.
Segundo Veblen, o consumo é um sinal de distinção entre classes sociais. No entanto, lembra Bauman, o consumo hoje também é um sinal de equiparação social, pois, embora a lógica de consumo varie entre diferentes classes sociais, o consumo é lógico a todos.
Para Bauman, classes sociais são inferiorizadas pelo fato de serem excluídas, e isso se deve antes a fatores sociais do que político-econômicos.
“Este conceito de classe inferior me deixa horrificado. Você não é de uma classe inferior, você está simplesmente excluído (está do lado de fora). As pessoas costumam subestimar a humilhação e o sofrimento que é estar excluído do mundo e preso nos guetos.”
Segundo Bauman, numa sociedade sinóptica de viciados em comprar, os pobres não podem desviar os olhos, pois não há mais para onde olhar. Os ricos, por sua vez, parecem ter mais possibilidades de escolha, mas suas vidas não são menos insuportáveis por isso.
“É muito difícil encontrar uma pessoa feliz entre os ricos. A felicidade tem a ver com a satisfação de expectativas. O pobre consegue ser feliz com mais frequência exatamente porque a sua vida pede pouco para ser satisfeita.”
Na sociedade líquido-moderna, diz Bauman, não consumir significa escolher ser excluído:
“Se você define seu valor pelas coisas que você tem e que te rodeiam, ser excluído é humilhante. É o crime da humilhação”.
A cultura do lixo
Na visão de Bauman, vivemos hoje numa cultura de lixo.
Numa sociedade de consumidores que sufocam produtores, a lei consumista afirma que quem não consome tornar-se-á humilhado, quem consome livrar-se-á da exclusão, e o que é consumido transformar-se-a em lixo. Essa é a expressão caprichada da cultura de lixo contemporânea.
“O lixo é o principal e comprovadamente o mais abundante produto da sociedade moderna de consumo. Entre as indústrias da sociedade de consumo, a de produção de lixo é a mais sólida e imune a crises.”
Em Vida Para Consumo, Bauman também cita Aldous Huxley ao dizer que a sociedade atual de consumidores e produtores de lixo causa o próprio caos e desordem no “admirável mundo líquido”.
A escravidão consumista é a realidade massiva na atual cultura do lixo.
“A vida talvez seja sempre um viver-para-a-morte. Mas, para os que vivem na líquida sociedade moderna, a perspectiva de viver-para-o-depósito-de-lixo pode ser a preocupação mais imediata.”
Referências bibliográficas:
BAUMAN, Zygmunt. Vida Para Consumo.
BAUMAN, Zygmunt. Trabalho, Consumismo e os Novos Pobres.
BITTENCOURT, Renato. A Estrutura Simbólica da Vida Líquida em Zygmunt Bauman.