Meditação sobre o Teletransporte

Alguns comentários futurólogos sobre o tempo em planetas imaginários, máquinas futuras e dirigíveis no vazio.

“Amor é o que se aprende no limite, depois de se arquivar toda a ciência
Herdada, ouvida.
Amor começa tarde”

Carlos Drummond de Andrade

Eu quero que você veja algo: o invisível. Ultrapasse o simples negrume ou os espaços vazios de algum lugar. Veja o invisível. Veja a ausência sem referência alguma, o nada em si.

Guarde isso.

No ano de 1933 d.C. sob os auspícios de Vargas, a companhia alemã Luftschiffbau Zeppelin decidira estabelecer um hangar para os seus dirigíveis no Rio de Janeiro. Conexão Frankfurt. Local escolhido após estudos de clima e terreno na Baía de Sepetiba, área de 80.000 m2 doada pelo Ministério da Agricultura, atual Base Aérea de Santa Cruz com o único hangar de Zeppelins no mundo preservado. A construção a cargo da Construtora Nacional Condor. Empreendimento inaugurado no dia 26 de dezembro de 1936. Em dimensões: 270 metros de comprimento, 50 metros de altura e 50 metros de largura, torre de comando de 61 metros de altura, portões norte e sul abertos manualmente em tempo médio de 6 minutos. 200 homens na pista para desatracar os dirigíveis, os chamados “aranhas”. Um Meu bisavô foi um deles. Francisco Nunes.

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Os dirigíveis não tiveram vida longa apesar de suas faraônicas ambições. O desenvolvimento do avião comercial, o Acidente do Hindenburg (6 de maio de 1937), largas ambições incineradas pelo avanço tecnológico que ansiavam criar. E que motivaram como ainda motivam. Desde aquela época, desde…

… O teletransporte entendido em seu sentido mais simples é a ação de locomoção espacial instantânea. Sumir aqui e aparecer n’outro lugar. Um dos primeiros efeitos especiais do cinema já nas experiências de ilusionismo e fotografia de Georges Méliès, termo de Charles Fort, o grande inimigo do ceticismo e da razoabilidade; fenômenos associados ao teletransporte são tão antigos quanto os mitos pagãos e análogos pelas novas experiências da mecânica quântica e ciência de borda. Ir de A a C sem passar por B: velha fórmula de magia de Agrippa. Teletransporte também é utilizado pelo filósofo analítico Derek Parfit para descrever experiências sofisticadas de identidade. Algumas analogias simples e estranhas;

Georges Melies

Fleumático, quando o Sr. Spock “desce” nos planetas – tem seu corpo desmaterializado na Enterprise e rematerializado no ponto de pouso de acordo com a ciência fictícia de Star Trek – ele é o mesmo Spock que contrapunha Kirk ou apenas uma cópia exata com as memórias reproduzidas como num CD regravável? Em Mirror, Mirror temos um Spock bom e um Spock mau, assumindo que eles tenham partido de uma mesma situação (simultânea se não idêntica) – filho de Amanda e Sarek, errática educação vulcana, brilhante carreira na Federação – em que medida são-não-são a mesma pessoa?

Uma carroça reconstruída em cada um dos seus componentes ainda é a mesma carroça? Coloque uma mente e autoconsciência na carroça. Se a carroça autoconsciente no teletransportador da Enterprise viajar simultaneamente para Terra e Vulcano as duas carroças ainda seriam a carroça ou filhos/irmãos gêmeos dela? A carroça-T (da Terra) e a carroça-V (de Vulcano) seriam cópias exatas e contínuas da autoconsciência da carruagem-E (Enterprise). As carroças-T-e-V desenvolveriam novas memórias, experiências, conhecimentos e ações que as distanciariam das memórias, experiências e ações da existência interrompida (ao menos em seu próprio recorte de suposto universo compartimentado) da carroça-E. Como velhas ninfas nossa carroça desaparece e reaparecem. As novas carroças são imediatamente iguais, lembram de suas infâncias, a mesma infância, nos koans búdicos e a manufatura de suas engrenagens, as suas primeiras viagens por ruas hipotéticas e estradas especulativas até o momento de entrar e sumir no teletransportador, mas da rematerialização para frente tudo será constituição de novas personas: as carroças-T-e-V foram a carroça-E como um velho coronel fora um menino apesar de não lembrar-se e ter em mente mais presentes as experiências de ser um jovem soldado de uma guerra, e que em sua luta lembrara ser o menino. Imagine-se uma carroça. Rodas e eixos e madeira. E agora você desaparece.

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Esqueça o antes, esqueça o depois. Pense no momento exato de desaparecimento. Seria um rápido dormir? Ninguém tem o corpo desintegrado ao dormir. Nem aqui nem acolá. Pense na possibilidade ato contínuo desconstrução-reconstrução da mente. O momento entre ambos.

The Prestige

Eis um mundo de trevas opacas, o antimundo. Foque em sua imagem do invisível, saiba que ela é a inexistência. É bem frio, não? É silencioso. Está aquém do Inferno. É pior que a morte. É um espaço de horizontes rompidos, futuros abandonados, passados expurgados, além de além da imaginação: o não-lugar circundante das coisas. Sem forma e sem completude. Sem o Espírito e sem as proverbiais águas abismais. Por lá estão alguns esboços esquecidos da ficção científica, o Hindenburg inteiro e viajando no vazio, o túnel subterrâneo ligando Rio de Janeiro e Niterói, todas as coisas que irremediavelmente não são. Quiçá o destino de todas as coisas no apocalipse científico Big Rip.

E assim mesmo em meu bisavô, ou no Pavel Chekov, valorizamos em ações (mesmo inconscientes em nossas cadeiras montadas e projetadas por alguém, computadores, o pão de toda manhã) também homenagens (nomes famosos, marcas, signos) os muitos homens que contribuíram com gênio e esforço para os grandes projetos humanos, homens (mulheres, brancos, negros, asiáticos) de mente e braços, suor e inspiração. A evolução, os vôos dos Zeppelins, nasce de muitos caminhos cruzados, caminhos ousados, arriscados e perdidos. Os grandes dirigíveis em suas majestades superaram as outras ambições de aviação, e foram superados, e talvez em algum futuro profetizado os teletransportes de Charles Fort sejam reais como os nossos aviões comerciais. E talvez os próprios teletransportes sejam em algum lugar de futuro algo atrasado e primitivo como as nossas ninfas e espíritos furtivos do mato. Nós migramos no tempo, somos seres do tempo. Eu sou em partes aquele “aranha”, o Francisco, aquele homem que ajudou a subir e descer e viu de perto o Hindenburg. Eu sou a evolução tecnológica de Francisco, o seu legado e vestígio, permanência. E ele é o meu silêncio.

Fascinante, não?

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