Parada de ônibus cada vez mais cheia. Assim acontece diariamente na hora de ir pra universidade. Eu não vou mais para a aula, mas o ambiente acadêmico continua a me seduzir e lá estava eu a caminho de uma reunião com outros amigos sonhadores.

Finalmente depois de mais de 30 minutos um ônibus com destino ao lugar que mais pulsa vida na cidade. Por um milagre, logo que entrei consegui um lugar para sentar. Na última fileira do ônibus, segundo banco da esquerda para a direita. Nas duas paradas seguintes, o ônibus lotou.

Na próxima parada, as portas abriram mesmo sem ter lugar para mais ninguém. O menino que estava sentado à minha esquerda, no banco da janela, pediu licença e levantou. Enquanto saía, cerca de dez pessoas, praticamente todas entraram no ônibus com suas pastas com o nome do curso bordado e os cadernos embaixo do braço.

Menos um.

Cambaleando, um homem que aparentava trinta e poucos anos, sem barba, com roupas sujas e com cheiro forte de aguardente foi logo avisando:

– Deixa eu sentar que eu preciso cantar hoje à noite.

Quase caiu em cima de mim, já que não quis esperar dar licença para ele poder sentar. Atirou-se naquele lugar. E continuou contando: ia cantar em virtude do Dia dos Namorados.

Como todos naquele ônibus, pensei em ir para o mais longe possível daquele homem que parecia encrenca. Mas o ônibus estava tão lotado que eu não conseguiria sair dali e além do mais, queria muito saber aonde o homem ia cantar e se sabia cantar mesmo.

Cléber era o nome dele. Apresentou-se rapidamente ao ver que tirei os fones para fazer o que ao que parece ninguém tinha o interesse em fazer: ouvir a sua história. Descobri que ele era o Cléber, morava na casa dele e ia cantar no Bar da Ivone, no posto perto da BR. Mais tarde, durante o nosso trajeto até a universidade (quando desci), me confidenciou que bem na verdade o bar era do marido da Ivone, mas eles se separaram, portanto agora era dela.

Enquanto conversávamos, muitas pessoas começaram a rir. Não sei se de mim ou dele, mas se Cléber não se importava, eu muito menos. Mas Cléber se importou, ficou chateado e disse que as meninas de roupa branca que riam dele com desdém eram entupidas, apesar de serem gost…

-Não acredito Cléber! Tu não podes falar isso pras meninas! E se fosse tua mãe, tua irmã cara? Que feio isso, como tu quer que sejam legal contigo se tu não estás sendo legal com os outros?

Eu disse, num impulso que depois que conheci o feminismo não consigo mais segurar. Esperei a reação negativa dele. Talvez até violência afinal, era um homem que parecia embriagado recebendo uma lição. Porém, como uma criança arrependida, aquela pobre criatura me pediu desculpas, prometeu que ia ser legal.

A essa altura, mesmo fingindo estarem entretidos em seus smartphones, todos os passageiros daquela linha já escutavam atentos a nossa conversa. Eu sentia os olhares. Ao perceber que tinha atenção, numa tentativa de atrair fãs para seu grande show daquela noite fria, Cléber deu uma palhinha. Cantou trechos de diversas músicas, enquanto eu tentava com que parasse, pois apesar de estar me divertindo com aquela aula de vida que eu recebia e que dava aos que presenciavam, não havia trazido guarda-chuva.

Ele gostava de sertanejo, mas quando fiz cara feia remendou rapidamente se dizendo fã de rock’n roll. Perguntou meu nome, disse que ia cantar uma música pra mim no Bar da Ivone  naquela noite. Rindo da sua simplicidade disse que era sua Amiga do Ônibus e perguntei se ele cantava Raul.

Começou a cantar Meu Amigo Pedro, do Raul. Entre cuspe e o cheiro forte de álcool, Cléber continuou ensinando aqueles que estavam ali no ônibus sendo obrigados a ouvir as suas palavras:

“Pedro, onde você vai eu também vou
Pedro, onde você vai eu também vou
Mas tudo acaba onde começou

Tente me ensinar das tuas coisas
Que a vida é séria e a guerra é dura
Mas se não puder, cale essa boca, Pedro
E deixa eu viver minha loucura

Lembro, Pedro, aqueles velhos dias
Quando os dois pensavam sobre o mundo
Hoje eu te chamo de careta, Pedro
E você me chama vagabundo”

Se fosse um viral da internet, esse era o momento em que todo mundo aplaudiria. Mas na vida real só eu fiz isso. E fiz de coração pedindo, em seguida, desculpas ao Cléber que ficou chateado com o retorno negativo do seu público. O fiz em voz alta, pedindo perdão a ele pelos que ali estavam e não souberam apreciar o trabalho do artista. Cléber sorriu, disse que gostou de mim.

Chegamos à universidade e me despedi dele. Disse pra que ficasse em paz e desejei que fosse feliz. Pedi que respeitasse as meninas e disse que a água da torneira era a melhor que tinha para um cantor. Cléber riu, agradeceu por eu ter sido legal pra ele e me convidou pra ir vê-lo cantar no Bar da Ivone. Quando eu ia descer, começou a falar mais alto e sorrindo, cantarolava que eu não era exibida e ele ia me amar pra sempre.

Desci do ônibus rindo. Cléber, tendo tudo para deixar aqueles 20-30 minutos dentro de um coletivo urbano ainda mais estressante, me fez feliz. Lembrei-me de um vídeo do Lama Padma Samten aonde ele diz que a vida oferece várias oportunidades de melhorar a existência de cada um. Ele comenta as cinco sabedorias do budismo que permitem caminhar melhor no mundo e ajudam a transformar a mente.  Através destes ensinamentos afirma-se que fazer o bem aos outros, também nos faz bem e que para ajudar uma pessoa é necessário entender o seu mundo, a sua realidade.

 Somente emanando coisas boas é possível esperar o bem, já que o mundo só nos devolve o que demos pra ele. Cléber, sendo realmente cantor ou não, deu-me uma aula sobre simplicidade e me presenteou com o que mais gosto: ouvir histórias. Eu dei a ele a atenção que ele tanto precisava e os passageiros que presenciaram tudo isso, com certeza, foram para a aula com a cabeça cheia.