Há muito tempo atrás, cientistas pensavam que o esquecimento era uma falha cognitiva, um grave erro de processamento cerebral. Hoje, o esquecimento é amplamente considerado como um importante ativo da memória, e vital para o bom funcionamento do cérebro.
As memórias são parte integrante de quem somos, já que recordações vão formando nossa história com o passar do tempo.
Mas, por que nos esquecemos de tantas coisas?
Segundo Elizabeth Loftus, especialista em memória humana, existem quatro razões principais pelas quais esquecemos algo (ou alguém):
1. Falha de armazenamento
Isso acontece quando apenas alguns detalhes das informações são armazenados na memória, o que compromete a captação desses dados em sua totalidade.
“Às vezes, a perda de informações tem menos a ver com esquecimento, e mais com o fato de que elas nunca chegaram à memória de longo prazo.”
2. Falha de recuperação
É a nossa incapacidade de recuperar informações na memória por causa do processo de decadência (memórias vão desaparecendo e novas vão sendo criadas toda vez que surge uma nova informação).
“Se a informação não for recuperada, eventualmente será perdida.”
3. Interferência
A interferência é o choque de memórias similares que competem entre si. Quando novas informações são muito semelhantes à outras que estão armazenadas na memória, a interferência é mais provável de ocorrer.
“Existem dois tipos de interferência: proativa, quando uma memória antiga torna mais difícil ou impossível de se lembrar de uma nova memória; e retroativa, quando novas informações interferem na capacidade de recordar informações anteriormente aprendidas.”
4. Motivação para o esquecimento
Quando fazemos tentativas de esquecer as memórias (especialmente aquelas traumáticas e perturbadoras) por conta própria.
“As duas formas de esquecimento são a supressão (forma consciente de esquecer); e a repressão (forma inconsciente de esquecer).”
Sabendo mais sobre esses motivos que levam ao esquecimento, como isso afeta nossa memória para o bem e para o mal?
A benção do esquecimento
Talvez não faça muito sentido, mas esquecer nos ajuda a lembrar, como inúmeros estudos já comprovaram.
Em um desses estudos (feito recentemente pela Universidade de Illinois), um dos pesquisadores, Benjamin Storm, afirma que:
“Nós não seríamos capazes de aprender novos conhecimentos e informações se não esquecêssemos algumas coisas. Precisamos atualizar nossa memória para que possamos lembrar e pensar sobre aspectos que são atualmente relevantes.”
Essa pesquisa (publicada na revista Nature) indica que pessoas capazes de esquecer informações irrelevantes são melhores em resolver problemas e se lembrar de coisas importantes (mesmo quando estão distraídas).
E também, para podermos lembrar com maior exatidão, é necessário que sejamos eficazes em filtrar ruídos (tudo que desvia a nossa atenção).
Sendo assim, pode-se dizer que uma boa memória depende basicamente de esquecimento e concentração em determinados níveis.
Além de organizar a memória, esquecer também nos ajuda na recuperação de traumas emocionais. As pessoas que têm dificuldade no processo de esquecimento são mais suscetíveis a sofrerem sintomas de depressão, já que constantemente se sentem presas a sentimentos indesejados.
Mas, apesar de ajudar, o esquecimento está muito longe de ser uma solução definitiva para o tratamento de traumas.
A maneira como interpretamos o passado pode variar bastante conforme o tempo, porém, algumas memórias nunca serão esquecidas, visto que eventos altamente impactantes (positivos ou negativos) reforçam a persistência da nossa memória para essas experiências, gerando impressões permanentes apesar do surgimento de novas circunstâncias.
A maldição do esquecimento
O filme Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), roteirizado por Charlie Kaufman, é uma ótima referência para demonstrar que o esquecimento nem sempre é uma benção.
No filme, Joel (Jim Carrey) vive um ligeiro relacionamento amoroso com Clementine (Kate Winslet), uma mulher que conheceu durante viagem de trem que faziam. Repentinamente, eles acabam se apaixonando um pelo outro, apesar de terem personalidade e valores completamente diferentes.
A relação mantém-se estável e até harmônica mas, após uma série de conflitos e divergências, os dois acabam se separando.
Bastante frustrada, Clementine deseja esquecer todo o relacionamento que teve com Joel, e para isso ela procura uma empresa que supostamente consegue manipular e apagar memórias da mente.
Quando descobre essa intenção, Joel se sente arrasado, e decide então se submeter ao mesmo procedimento.
Tudo ocorre como esperado, e um não se lembra mais do outro. No entanto, mesmo com as memórias ocultadas da consciência, os dois voltam a se encontrar e acabam se relacionando novamente, mas em contrapartida, eles também revisitam toda aquela desilusão dos sentimentos incompreendidos. E voltam a sofrer.
Na ânsia de fugir da realidade (através do esquecimento), a sanidade dos dois foi violada, e a solução “prática” que ambos chegaram para sanar esse tormento foi buscar algo que faça sentido, algo que pudesse uni-los novamente. No caso, a solução era o próprio problema.
Se as memórias dos dois eram atormentadoras, o esquecimento delas foi pior ainda. Uma ironia do destino.
Com esse roteiro, Kaufman expressa ser equivocada a ideia de que experiências ruins devem ser esquecidas, embora a sabedoria comum diga que “o esquecimento é uma benção”.
Na minha opinião, Kaufman é quem está equivocado, pois esse clichê popular do esquecimento realmente se aplica na maioria das vezes. O fato de que acontecimentos triviais são esquecidos é um fator vantajoso à sobrevivência, além de ser libertador.
Livrar-nos de algo (ou alguém) pode ser a medida necessária para um bem maior. Entretanto, Kaufman bem mostrou que essa escolha sempre poderá acarretar em crise de consciência e, como aconteceu com Joel e Clementine no filme, em frustração e até insanidade.
Outra visão de Kaufman é que devemos ter muito cuidado com aquilo que desejamos, pois os desejos vêm com um certo preço que talvez não estejamos dispostos a pagar.
O esquecimento muitas vezes é uma benção, mas toda benção carrega algum tipo de maldição. Na tentativa de esquecer memórias ruins, podemos cair no erro de ocultar lembranças fundamentais também associadas às experiências desagradáveis e, se for assim, a “dádiva” de esquecer o passado traz o “castigo” de ficarmos reféns do futuro.
Douwe Draaisma, professor de História da Psicologia (Universidade de Groningen) oferece uma opinião refinada:
“Esse filme é uma profunda experiência reflexiva sobre as consequências avessas de um esquecimento deliberado.”
*Com insights do Psychology About e Scientific American