Lendo esse título até parece que Jack Kerouac, autor da bíblia-mor beat “On The Road” escreveu apenas um livro, o primeiro e o último. Calma. O que acontece é que a primeira narrativa escrita por ele foi na verdade a última a ser lançada.
Jack Kerouac escreveu “O mar é meu irmão” quando tinha 20 anos de idade, ou sete anos antes de seu primeiro romance publicado, “Cidade Pequena, Cidade Grande”. O “novo” livro é baseado nas experiências que o autor passou ao trabalhar durante oito dias na cozinha do SS Dorchester, um navio da marinha mercante norte-americana.
É um registro histórico, que serviu como rascunho para aprimorar sua escrita que seria mundialmente reconhecida anos mais tarde. E que só aconteceu pois Jack Kerouac foi solicitado a deixar o barco em virtude de um campeonato de futebol do time da Universidade de Columbia. Caso Jack ficasse mais tempo a bordo é possível que não teríamos a oportunidade de ler “Vagabundos Iluminados”, “Big Sur”, “On The Road” e outras obras, já que o barco afundou quatro meses após o desembarque do autor.

A história de “O mar é meu irmão” aconteceu em 1942 e são lembranças bem realistas dos dias em que o autor passou em alto-mar, filosofando com o cozinheiro afro-americano “Old Glory”. Essas memórias ficaram engavetadas por quase 60 anos, sendo publicada em língua inglesa apenas em 2011, com o título “The sea is my brother: the lost novel”. O manuscrito original tem 158 páginas e começou a ser escrito dentro do próprio barco.
“O mar é meu irmão” é protagonizado por Wesley Martin, que assim como Sal Paradise e Ray Smith, é o próprio Jack. A edição brasileira do livro foi lançada pela L&PM Pocket em outubro deste ano. Além do romance, a publicação reúne também contos escritor por Jack Kerouac quando ele era jovem, fotos e desenhos do autor (que ilustram esta matéria) e cartas trocadas com seu amigo de adolescência Sebastian Sampas.

Confira abaixo um trecho do romance.
Capítulo um
A garrafa quebrada
Um jovem, cigarro na boca e mãos nos bolsos das calças, desceu os degraus de uma pequena escada de tijolos na saída do saguão de um hotel na parte alta da Broadway e dobrou na direção da Riverside Drive, arrastando-se de modo curioso, com passos lentos.
Anoitecia. As ruas quentes do mês de julho, encobertas por uma neblina de mormaço que turvava os contornos nítidos da Broadway, fervilhavam com um cortejo de ambulantes, coloridas barracas de frutas, ônibus, táxis, automóveis lustrosos, lojas kosher, marquises de cinema e todos os inúmeros fenômenos que criam o brilhante espírito carnavalesco de uma via pública em meio ao verão de Nova York.
O jovem, vestindo casualmente uma camisa branca sem gravata, um surrado casaco de gabardine verde, calça preta e mocassins, parou diante de uma banca de frutas e examinou as mercadorias. Na mão delgada, contemplou o que restava de seu dinheiro – duas moedas de 25 centavos, uma de dez e uma de cinco. Comprou uma maçã e seguiu seu caminho, mastigando pensativamente. Gastara tudo em duas semanas; quando aprenderia a ser mais prudente? Oitocentos dólares em quinze dias – como? onde? e por quê?
Quando jogou para longe o miolo da maçã, sentia ainda a necessidade de satisfazer seus sentidos com alguma [ ] ociosidade ou outra, de modo que entrou numa loja de charutos e comprou um charuto. Somente o acendeu quando já estava sentado num banco na Drive, diante do rio Hudson.
Havia um frescor ao longo do rio. Atrás dele, a enérgica vibração de Nova York suspirava e pulsava como se a própria ilha de Manhattan fosse uma corda desarmoniosa tocada pela mão de algum demônio descarado e atarefado. O jovem se virou e percorreu com seus olhos escuros e curiosos os altos telhado da cidade e embaixo, na direção do ancoradouro, onde a corrente de luzes da ilha curvava-se num arco poderoso, contas ardentes enfileiravam-se em sucessão confusa na névoa do verão.
O charuto tinha o gosto amargo que ele queria sentir na boca; fornecia uma sensação plena e ampla entre os dentes. No rio, ele podia distinguir vagamente os cascos dos navios mercantes fundeados. Uma pequena lancha, invisível exceto por suas luzes, deslizava por um caminho costurado, passando pelos escuros cargueiros e navios-tanque. Com um assombro silencioso, inclinou-se para a frente e observou os flutuantes pontos de luz que se moviam lentamente rio abaixo em líquida graciosidade, seu quase mórbido interesse fascinado por algo que poderia parecer banal para outra pessoa.
Esse jovem, no entanto, não era uma pessoa comum. Tinha uma aparência normal, pouco mais alto do que a média, magro, um semblante côncavo marcado pela proeminência do queixo e pelos músculos do lábio superior, a boca expressiva com linhas delicadas, mas abundantes entre os cantos dos lábios e o nariz fino, e um par de olhos simétricos e simpáticos. Mas seu comportamento era estranho. Costumava manter a cabeça muito erguida, de maneira que observava tudo num escrutínio que vinha de cima, com certa atitude abstraída que continha uma curiosidade altiva e inescrutável.
Nessa postura, fumou o charuto e observou os passantes que seguiam pela Drive, em paz com o mundo segundo todas as aparências. Mas não tinha dinheiro e sabia disso; no dia seguinte, não teria sequer um tostão. Num arremedo de sorriso formado ao erguer um canto da boca, tentou lembrar-se de como gastara seus oitocentos dólares.
A noite anterior, ele sabia, custara-lhe seus últimos cento e cinquenta dólares. Bêbado por duas semanas consecutivas, reconquistara finalmente a sobriedade num hotel barato no Harlem; de lá, lembrou, tomara um táxi até um pequeno restaurante na Lenox Avenue que servia somente costeletas. Fora ali que conhecera aquela bonita garota de cor que fazia parte da Juventude Comunista. Lembrou que haviam tomado um táxi até Greenwich Village, onde ela queria ver certo filme…. não era Cidadão Kane? E depois, num bar na MacDougall Street, ele a perdeu de vista quando topou com seis marinheiros sem dinheiro; eram de um contratorpedeiro em dique seco. Desse ponto em diante, conseguia lembrar-se de pegar um táxi com eles e cantar músicas de todos os tipos e descer no Kelly’s Stables na 52nd Street e entrar para ouvir Roy Eldridge e Billie Holliday. Um dos marinheiros, um auxiliar de farmacêutico com traços vigorosos e cabelos escuros, falou o tempo inteiro sobre o trompete de Roy Eldridge e sobre como ele estava dez anos à frente de qualquer outro músico de jazz, com exceção, talvez, de dois outros que tocavam às segundas no Minton’s, no Harlem, Lester alguma coisa e Ben Webster; e sobre como Roy Eldridge era realmente um pensador fenomenal, com ideias musicais infinitas. E então foram todos para o Stork Club, que um outro marinheiro sempre quisera conhecer, mas estavam todos entorpecidos demais para que pudessem ser admitidos, de modo que recorreram a uma espelunca barata para dançar, onde ele comprara um maço de bilhetes para o grupo. De lá tinham partido para um lugar no East Side onde a madame lhes vendeu três litros de scotch, mas quando se deram por satisfeitos a madame se recusou a deixar que dormissem todos ali e os chutou para fora. De qualquer maneira, já não aguentavam mais o lugar e as garotas, e assim rumaram cidade acima na direção oeste até um hotel na Broadway onde ele pagou por uma suíte dupla e terminaram de beber o scotch e desabaram em cadeiras, no chão e nas camas. E então, no final da tarde seguinte, ele acordou e encontrou três dos marinheiros esparramados em meio a uma desordem de garrafas vazias, quepes de marinheiro, copos, sapatos e roupas. Os outros três tinham saído para algum lugar, talvez em busca de um antiácido ou suco de tomate.
Então ele se vestiu lentamente, depois de tomar um banho demorado, e foi dar uma volta, deixando a chave na recepção e pedindo ao recepcionista que não perturbasse seus companheiros adormecidos.
E aqui estava sentado agora, sem ter no bolso nada mais do que cinquenta centavos. A noite anterior custara mais ou menos $150, entre táxis, bebidas aqui e ali, contas de hotel, mulheres, bilhetes de entrada e tudo mais; os bons momentos estavam acabados naquele momento. Sorriu ao recordar como tinha sido engraçado quando acordou poucas horas antes, no chão, entre um marinheiro e uma garrafa de um litro vazia, e com um de seus mocassins no pé esquerdo e o outro no chão do banheiro.